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Transporte público, vícios privados

14 de dezembro de 2013 - 10:15 am

Congestionamento Monstro

Muitos autores de ficção científica das décadas de 1960, 70 e 80 pintaram as cidades do futuro — esse futuro que chegou e que virou nada mais do que nosso presente — em tons pessimistas, produzindo distopias que nos assombravam e alertavam para os (des)caminhos que tomávamos em nossas escolhas cotidianas e no panorama maior da vida política e econômica de nossas sociedades. Nos mostravam cenários de decadência acelerada povoados por milhões de seres humanos reduzidos a condições degradantes, vivendo amontoados, porém solitários, alimentando-se dos restos de uma sociedade pós-hecatombe industrial/nuclear.

Porém, nem mesmo mestres como Philip K. DickFrank Miller ou William Gibson poderiam ter imaginado algo que se assemelhasse a São Paulo. Cidade monstruosa, que dia e noite trama a extensão de seus cinzentos tentáculos para novas direções, promovendo a destruição da natureza e sua substituição pelo asfalto e concreto. “Lar”de quase 20 milhões de almas (se levarmos em conta toda a mancha urbana), São Paulo é um dos maiores desafios jamais imaginados para governantes, urbanistas e todos aqueles que tentam compreendê-la e domá-la. Sobretudo quando se fala em transporte.

Mais do que construir linhas de metrô ou corredores de ônibus, o desafio em São Paulo está em construir uma nova mentalidade em sua população. Por exemplo, torná-la mais afeita às formas de transporte coletivo e alternativo. Em São Paulo (e de resto em toda grande e média cidade brasileira, com as raras exceções de sempre), a ideia de mobilidade é diretamente ligada à posse e ao uso do carro particular. Por muito tempo, o carro foi (e ainda continua sendo) o sonho de consumo de boa parte da população adulta brasileira. Símbolo de status, de independência, de sucesso. Mesmo os mais humildes reservam partes consideráveis de suas parcas economias para em algum momento adquirir — com prestações a perder de vista — o veículo próprio da família. Ele é visto como o símbolo máximo da conquista material. Claro que essas ideias são massivamente despejadas para dentro do imaginário das pessoas por horas e horas de propaganda televisiva em que o automóvel — não importa o modelo ou marca — desfila impávido e triunfal por ruas quase sempre vazias (quimera inventada por agências a serviço da indústria automotiva), transportando dentro de si indivíduos sorridentes, satisfeitos, realizados — o suprassumo da civilização, os vencedores da árdua luta diária travada no mundo moderno.

Talvez por isso, iniciativas como a que ora toma forma na cidade de São Paulo enfrentem resistência de uma parcela considerável de sua população. Mesmo que as pesquisas indiquem que a ampla maioria apoie a implantação de faixas exclusivas para ônibus, mais de 10% (um contingente expressivo) considera essas medidas “populistas”, “irracionais”, e até mesmo “inconstitucionais”(sic!).

Se for para usar argumentos racionais, o carro é de longe a pior alternativa para transportar o mesmo número de pessoas: ele ocupa mais espaço e emite mais CO2.

Por mais que toneladas de estudos apontem o esgotamento do modelo adotado por São Paulo no passado e que se apoiava no uso massivo de veículos individuais, a discussão parece não se dar mais no plano da racionalidade, mas sim no da paixão. É fato: as pessoas são apaixonadas por seus carros — novamente, este é um veio muito explorado pelas agências de propaganda. (Basta ver os que gastam horas de seus fins de semana lavando, encerando e lustrando até pneus…) E é difícil argumentar quando os sentimentos estão em jogo. Mas este talvez seja apenas o lado mais “romântico” da questão. E mais ingênuo.

Contudo, há outro ângulo que muitas vezes não é abordado. E talvez seja ele o mais importante de todos. Por mais que se negue, há uma ideologia arraigada na sociedade brasileira — e na paulistana em especial — de segregação social do espaço. Claro que em todo canto do planeta isso ocorre, mas no Brasil e em São Paulo essa realidade é mais aguda. Não vou entrar em detalhes, mas os geógrafos, sociólogos e antropólogos têm centenas de estudos a respeito e podem confirmar que não estou forçando a barra. Há na cultura brasileira um descaso patente ao que é público — e, em contrapartida, uma supervalorização dos bens privados. (As raízes disso, como bem apontou Sergio Buarque de Holanda, ou como aprofundou Raymundo Faoro, para citar dois estudos clássicos, remontam à forma como se deu nossa colonização.) É difícil vermos, mesmo nas cidades mais ricas, boas praças, bons parques, boas bibliotecas públicas — todas e todos sucateados, quando existem. No entanto, temos uma variedade de focos de suntuosidade privada, com mansões que lembram castelos, apartamentos que equivalem ao tamanho de 5 ou 6 moradias médias, casas de campo e de praia que parecem cenários de filme norte-americano etc. etc.

A iniquidade brasileira é famosa e persistente. Séculos de história construíram cenários urbanos em que tudo fica “no seu devido lugar”, isto é, uma parte ínfima da sociedade fica com o que há de melhor, enquanto a imensa maioria se digladia para repartir os nacos que sobram de nossa pujante economia.

Grandes cidades, como São Paulo, veem na irrefreável expansão da malha urbana um de seus maiores dramas e paradoxos. Para que a economia cresça, é necessário gente, muita gente — ou ao menos foi assim, no modelo econômico do século XX. Mas como a forma de repartir a riqueza produzida mantém-se precária, grandes contingentes de seres humanos, com poder de compra bastante restrito, são obrigados a procurar, cada vez mais longe dos polos econômicos da cidade, locais minimamente adequados para fixarem residência. Daí o crescimento explosivo das periferias no país inteiro. E desse movimento, nasce, como consequência clara, uma superdemanda por transporte, seja público ou privado.

Encontram-se, então, as duas pontas da cobra. A mesma e pequeníssima porção da sociedade que fica com a maior parte da riqueza produzida por todos, e que consciente ou inconscientemente alimenta uma lógica que expulsa os mais pobres para cada vez mais longe, torce o nariz para melhorias evidentes no transporte daqueles que são relegados à periferia da cidade — melhorias estas que trariam, inclusive, mais fôlego ao modelo econômico vigente.

É óbvio que a implantação de faixas exclusivas é apenas um arranhão no problema do transporte em São Paulo. Contudo, é um primeiro passo — que outros governantes ou não deram ou fingiram acreditar que não fosse necessário. Um primeiro passo que, até simbolicamente, marca uma virada naquilo que deve ser priorizado: o espaço público, o bem comum, o direito de todos de ir e vir.

@Ronoc_

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Pitada de sal #18

12 de setembro de 2013 - 10:34 pm

António Lobo Antunes

“De facto, e consoante as profecias da família, tornara-me um homem: uma espécie de avidez triste e cínica, feita de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha substituído para sempre o frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe, de tempos a tempos, à noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troça.”

António Lobo Antunes em Os cus de Judas (Rio de Janeiro: Alfaguara / Objetiva, 2a. ed., 2010, p.28).

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Como dizer adeus a quem se ama…

12 de julho de 2013 - 5:29 am

livro_tibetano“Às vezes, a pessoa que vai morrer pode resistir por muitos meses ou semanas além do que os médicos previram, e passar por um tremendo sofrimento físico. […] para essas pessoas se sentirem prontas para deixar tudo e morrer em paz, elas precisam ser tranquilizadas verbal e explicitamente por aqueles que amam sobre pelo menos duas coisas. Em primeiro lugar, precisam obter deles permissão para morrer, e em segundo ter a certeza de que estarão bem depois que ele ou ela se for, e que não há motivo para preocupação a respeito.

Quando alguém me pergunta qual a melhor forma de dar permissão para morrer, peço-lhe que imagine a si próprio diante do leito da pessoa que ama, dizendo-lhe com a mais profunda e sincera ternura: ‘Estou aqui com você, e eu o amo. Você está morrendo e isso é absolutamente natural; acontece com todos. Gostaria que pudesse ficar aqui comigo, mas não quero que sofra mais. O tempo que passamos juntos foi muito bom e vou sempre me lembrar dele com carinho. Por favor, agora não se agarre à vida por mais tempo. Solte-se. Dou a você a minha plena e sincera permissão para morrer. Você não está sozinho agora, e nem estará nunca. E tem todo o meu amor’.”

Sogyal Rinpoche em “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer” (São Paulo: Talento / Palas Athena, 12a. ed., 2010, pp. 237-238)

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As memórias que guardo de meu pai #1

11 de julho de 2013 - 11:25 am

Imagem compartilhada pela querida amiga Danielli

Fico impressionado como o mecanismo do trauma ao mesmo tempo tem o poder de bloquear e libertar nossas memórias mais profundas. Certa vez, ao sofrer um acidente de bicicleta tão grave que chegou a rachar meu capacete (que salvou minha vida, imagino), percebi que uns 20 a 30 minutos daquele episódio simplesmente haviam sido apagados da minha mente. Lembrava (e ainda lembro) apenas de momentos antes do acidente acontecer, e depois de aparecer como por encanto em um banheiro com a testa ensanguentada e dois senhores me amparando. Entre uma coisa e outra, é como se nada existisse. O médico logo me corrigiu: o episódio não havia sido apagado. O mais correto, explicou, seria dizer que um mecanismo complexo de nosso cérebro nos ajuda a superar momentos traumáticos “trancafiando” as memórias deles em algum canto bem escondido de nossa cabeça. A memória está lá, mas fica inacessível. Para nos proteger da dor…

Agora que meu pai se foi, contudo, o trauma está agindo no sentido oposto, trazendo à tona episódios que eu nem sabia mais que haviam existido. Vêm falas, imagens, silêncios e gargalhadas, brotando num ímpeto que às vezes se torna até opressor tamanha a dificuldade de lidar com tantas emoções que se atropelam — todas urgentes, todas necessárias, todas alucinadamente se arremessando em minha consciência, exigindo minha atenção, implorando para que eu as coloque numa ordem lógica qualquer, que faça algum sentido. Qualquer um, mas que traga isso: sentido.

Muito provavelmente, estou equivocado. O que deve estar agindo neste momento deve ser algum mecanismo tão poderoso quanto, mas disparado pela perda. E esses fragmentos de lembranças voltam porque talvez eu esteja tentando desesperadamente me agarrar a cada pedaço vivo (ainda que intangível) de meu pai. Como se magicamente fosse capaz de reconstituí-lo. 

Independente das minhas ou das suas crenças, o fato é que meu pai continua vivo em mim — e nas pessoas que ele tocou durante sua passagem por este planeta. E o sentido biológico disso é o menor e menos importante. Ele continua em tudo que presenciei e compartilhei com ele, em tudo que me ensinou, ou que me deu a chance de experimentar. Esse patrimônio, pretendo passá-lo da maneira mais fiel possível à minha filha, para que ela saiba de onde vieram suas raízes, para que ela possa compreender melhor seu próprio pai, sabendo a origem de minhas virtudes e defeitos.

Sei que tudo isso talvez só diga respeito a mim, e à minha família. Porém, vou deixando aqui registrado, para que não se perca, para que uma espécie de legado (palavra que aqui soa tão pretensiosa, desculpem) vá sendo criado. Para que eu siga compartilhando meus dias com a memória de meu pai.

por Ronoc |

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Pitada de sal #17

29 de dezembro de 2010 - 8:17 am

Maria Rita Kehl“A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibi- cionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosa- mente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na contramão de seu tempo, vêem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social de sua tristeza. Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber.”

Maria Rita Kehl em passagem de seu O tempo e o cão: a atualidade das depressões (São Paulo: Boitempo, 2009, p.22).

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A vida é um jogo

12 de dezembro de 2010 - 9:09 am

O grande jogo de Billy Phelan, de William KennedyAs ruas de Albany, capital do estado de Nova York, nos anos que sucederam a Grande Depressão formam o cenário deste romance que a editora Cosac Naify escolheu para apresentar — ou reapresentar, já que algumas de suas obras já haviam circulado por aqui na década de 1980 — ao público brasileiro o autor norte-americano William Kennedy. Com O grande jogo de Billy Phelan (São Paulo: Cosac Naify, 2009, 344p.), a editora deu início à publicação no Brasil do chamado Ciclo de Albany, conjunto de sete livros que têm a cidade como pano de fundo e as tor- tuosas relações entre seus habitantes como foco. À medida que escrevia as obras, o autor começou a perceber que elas constituíam “uma série aberta de narrativas não-seqüenciais, cada uma das quais se concentrava num único indivíduo que conduzia histórias alheias, cada uma delas escrita como obra capaz de se afirmar por si só, independente das demais do Ciclo; ainda assim, todos os livros se entrelaçavam” [1].

Neste primeiro ato, conhecemos o jovem Billy Phelan, uma “estrela” da noite de Albany, especialmente dos jogos que reúnem sua gente e animam sua sofrida existência. Seja nas pistas de boliche, nas mesas de pôquer ou de bilhar, ou ainda administrando as apostas nas corridas de cavalos, Billy é um exímio jogador. Do jogo vem seu sustento. No jogo exercita toda sua habilidade, aplica todo seu conhecimento.

Pouco a pouco, Kennedy vai nos deixando claro que nesta história o que está em jogo é a própria vida de Billy Phelan. O jogo tem suas regras: os códigos não escritos que regem as relações do submundo, os cógidos de honra e solidariedade que domesticam e influenciam as tensões sociais, unindo e afastando as pessoas; a linguagem do poder, que tem de ser compreendida desde cedo: Manda quem pode, obedece quem tem juízo… Afinal, o jogo tem seus donos. Senhores do mundo e do submundo de Albany, a família McCall domina a política, a economia e a jogatina da cidade. Quem quiser mover-se por qualquer um desses domínios — ou seja, quem quiser viver por ali — tem que lhes prestar vassalagem.

Mas deve ser assim sempre? Não haverá brechas por onde se mover, espaços a conquistar, caminhos alternativos a percorrer? É isso que Billy parece questionar durante todo o romance. Será o baixar a cabeça e aceitar o que se apresenta à sua frente a única saída? Mas, esperem, entrar nesse jogo não é para qualquer um. Sair derrotado de uma pista, de uma mesa, de um salão é uma coisa — mesmo que você saia com uma dívida impossível de saldar –; no grande jogo de Albany, o que se joga, como já dissemos, é o direito de existir. E Billy sabe disso muito bem.

O livro começa com Billy fazendo o impossível numa pista de boliche, acertando strike após strike e se aproximando magicamente da perfeição, que lhe escapa por um triz; e termina com Billy equilibrando-se entre forças poderosas que ameaçam lhe fechar todas as portas de sua cidade, tirar-lhe o oxigênio, quase como quem joga para fora de um aquário um peixe que passou ali toda a sua vida. Billy é sim um jogador nato. Conhece as regras do jogo. Conhece-as tão bem, que consegue subvertê-las, colocando-se acima delas. Jogando na defensiva ou sendo arrojado aos limites da imprudência, Billy tenta iludir e superar seus adversários, um a um, ou todos juntos, numa grande e intrincada disputa.

Logicamente, como já se disse e o próprio título enfatiza, Billy é o foco principal deste primeiro romance do ciclo. Mas há muito mais em O grande jogo de Billy Phelan. A relação pai-filho, que tantas obras-primas legou à literatura, ao cinema, à música ou a qualquer outra das artes, ocupa também aqui o papel de uma das molas propulsoras da trama. Seja na dolorosa ausência do pai de Billy, Francis Phelan, — personagem, aliás, que toma o centro de outro dos livros do ciclo de Albany, Ironweed, também lançado pela Cosac Naify –; seja na relação de outra figura importante, o jornalista Martin Daugherty, com seu pai, um escritor e dramaturgo que custou para ver sua obra ser reconhecida (algum paralelo com o próprio Kennedy, que também sofreu para obter reconhecimento?). Martin ainda atua como uma espécie de “narrador paralelo” da história de Billy, compondo um mosaico de vozes e reflexões que só faz tornar a obra ainda mais interessante de se ler.

– Ω –

Vale dizer que quem me indicou — já faz um bom tempo — O grande jogo de Billy Phelan foi meu amigo Diego Blanco. Todo reconhecimento para sua dica e também para sua persistência, porque foi graças a ela que pude finalmente conhecer William Kennedy. Aliás, quem quiser saber mais sobre o mundo da cultura, da política e da economia sob ângulos nada convencionais precisa ouvir o Num faz cabimento, podcast “de cunho anarco-partidário, sem fins lucrativos e desenvolvido por quatro caras que não têm o rabo preso com ninguém” que o Diego e outros três amigos (o Dionisius, o João e o Ricardinho) jogam nas teias da rede semanalmente. Realmente imperdível!

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Desvendando a argentinidade

3 de agosto de 2010 - 10:43 pm

Tão perto, tão longe? — com O atroz encanto de ser argentino, Marcos Aguinis constrói um roteiro para visitar, e compreender, a alma profunda do povo argentino (*)

Existia uma anedota que dizia ser o argentino um italiano que falava espanhol e pensava ser inglês. Mas isso são brincadeiras de tempos idos, diriam os antigos. O argentino não é mais um europeu perdido em terras sul-americanas. Há algum tempo se vê que, final e desafortunadamente, a Argentina se “latino-americanizou”. No entanto, por mais incômodo que seja, não podemos esquecer que ainda falta piorar muito para que a Argentina chegue à condição de desequilíbrio social que assola e sempre assolou o Brasil. Ainda que não sejam portadores da verdade absoluta — e não o são — índices como o IDH da ONU são um bom ingrediente para azedar o humor duvidoso daqueles brasileiros que, num cúmulo de covardia e sadismo, comprazem-se com a derrocada aparentemente interminável dos “rivais” argentinos.

Mesmo vivendo há pouco mais de meio século uma decadência recentemente acelerada, a Argentina mantém em quase todos os aspectos sociais uma vantagem absurda sobre o Brasil. Exércitos de miseráveis espalhados pelas maiores cidades, crianças morrendo por falta de alimento, falência dos sistemas de ensino e saúde públicos são, para o argentino, atordoantes novidades com as quais lamentavelmente o brasileiro há tempos pareceu se acostumar. Estar atento a essa realidade é um passo importante para conhecer melhor nosso vizinho austral, mas não o bastante.

O que faz Marcos Aguinis em seu O atroz encanto de ser argentino (São Paulo: Bei Comunicação, 2002) é justamente nos auxiliar, abrindo caminhos a esse embrenhado complexo que é o âmago do ser argentino. O livro é um ensaio aparentemente despretensioso mas que, à medida em que avançamos, vai ganhando liga, se agigantando e termina por nos arrebatar e surpreender completamente: a mistura fina de leveza e profundidade, de auto-ironia e compromisso político sem dúvida encantam e fazem com que a aproximação do leitor brasileiro com o universo argentino se dê quase que de forma natural.

Os temas oscilam do político ao cultural (às vezes com abordagens que lembram o antropológico), resvalando em pequenos eventos do cotidiano, voltando ao político, ao social, valendo-se de breves retomadas históricas. Em cada frase, em cada passagem, em cada página, Marcos Aguinis parece atormentado, tomado por uma angústia inelutável, a de querer buscar e apresentar, a si, aos seus compatriotas, ao mundo, uma explicação plausível para a atual condição argentina.

Uma seqüência de imagens traduz de forma quase irretocável esse clima. Com um truque cinematográfico simples mas de impacto visual muito forte, numa Buenos Aires entristecida e submetida a aterradoras nuvens escuras (ou a uma única e interminável nuvem escura), o povo nas ruas, multidões de indivíduos silenciosos, cabisbaixos, marcha melancolicamente para trás — vale a referência: o filme é A Nuvem (La Nube, Argentina, 1998), de Fernando Solanas.

A nuvem (Argentina, 1998), de Fernando Solanas

A nuvem (Argentina, 1998), de Fernando Solanas

É necessário compreender para superar. E é por isso que duas questões permeiam todo o livro: por que tudo deu tão errado? e como reverter o que parece acabado? A obsessão por responder a essas perguntas deve — o que é mais do que compreensível — ter se tornado uma epidemia nacional. O desempenho comercial do livro é eloqüente: num intervalo de cerca de um ano, nada menos que 17 edições foram avidamente absorvidas pelo público argentino.

O ATROZ ENCANTO DE SE VER REFLETIDO

Há mais de argentino no brasileiro e mais de brasileiro no argentino do que nossos vis preconceitos nos permitem enxergar. “Se quiséssemos simplificar as diferenças entre brasileiros e argentinos, poderíamos dizer que os primeiros se divertem ao ritmo do samba e os segundos choram ao ritmo do tango. A alegria do Brasil contrasta com a melancolia da Argentina.”, diz Marcos Aguinis na introdução à edição brasileira de seu livro. Perdoável equívoco. Como o tango, as raízes profundas do samba também se alimentam da tristeza das populações marginalizadas, como tão lindamente e para sempre nos lembrará Vinícius de Moraes em “Samba da Bênção”. Esse — o paralelo entre samba e tango — será apenas um dos tantos pontos de contato com que nos depararemos no decorrer da leitura.

A adesão ao personalismo e a conseqüente aversão às instituições, ou mesmo a alergia a qualquer tipo de lei ou regra, identificadas por Aguinis como ervas daninhas que vicejam na alma coletiva argentina, não por acaso nos lembram (como bem nota Pedro Malan no prefácio) o que dizia Sérgio Buarque de Holanda a respeito do brasileiro, sendo essas algumas das características negativas do que ele chamou de “homem cordial”.

Da mesma forma o ventajero ou vivo argentino — que recebeu um ácido e talvez definitivo retrato na recente película Nove Rainhas (Nueve Reinas, Argentina, 2000), de Fabián Bielinsky —, o famoso trambiqueiro que sobrevive da inocência de terceiros, aplicando golpes em série e se vangloriando disso, não é de forma alguma personagem estranho ao dia-a-dia do brasileiro. Maus hábitos de uma determinada parcela da população e que, às vezes com a anuência silenciosa de todos, acabam se transformando em rótulos negativos fáceis e por isso mesmo largamente difundidos mundo afora, também não nos despertam estranheza. Segundo Aguinis, muito da imagem que circula pelo mundo do argentino como um ser arrogante e espaçoso provém do cultivo e da aceitação, internamente, desses hábitos que desunem e geram tensão. Alguma semelhança com a irritante mania de certos brasileiros, sejam eles poderosos ou humildes ao extremo, de “levar vantagem em tudo” e ainda se gabar disso?

Nove Rainhas (Argentina, 2000): ou da execrável arte de passar a perna em todos à sua volta

Recuando à época colonial para investigar as raízes dos tropeços que deitaram por terra aquela que já foi uma das nações mais ricas e desenvolvidas do mundo, Aguinis nos confronta com mais um ponto facilmente reconhecível pelo público brasileiro. A ojeriza pelo trabalho, que era visto como tarefa de seres inferiores, escravos ou não, e a predileção pelo ganho fácil, que evitava a todo custo o risco do empreendimento concreto, jogava e continua séculos depois a jogar muitos dos donos do dinheiro a uma sanha especulativa desenfreada e escapista, pouco atrelada a atividades que promovam, mesmo que com imperfeições, o desenvolvimento da coletividade. Entre esforço e risco, e ócio e ganho fácil, não havia e não há muitas dúvidas.

Junto a isso, uma mítica crença de que tudo se resolve magicamente por si só — dá-se um jeitovamos tocando, e por aí vai — contribuiu para que problemas estruturais, mesmo quando identificados, nunca fossem encarados de frente, com a seriedade e firmeza necessárias.

Outro ponto de semelhança: a infantil necessidade de aprovação externa, o nefasto complexo de inferioridade que, desculpem a insistência, também não nos é nem um pouco desconhecido. Aguinis cita alguns exemplos. Entre eles, o esbanjamento insano de recursos públicos promovido à altura da comemoração do centenário (1810-1910) da revolução de maio (que marcou o início da emancipação argentina) com o único intuito de provar aos milhares de estrangeiros convidados o tão almejado pertencimento ao restrito clube das nações desenvolvidas. Enquanto o dinheiro escoava descontroladamente para festas e celebrações, muitos desses observadores internacionais, contudo, preferiam, mal-agradecidos, destacar os escândalos de uma justiça e de uma administração pública ineficientes e/ou corrompidas. Todos viam, mas os argentinos preferiam fazer de conta que não, aguilhoa o autor.

Mas nem tudo são espinhos. Um dos trechos mais belos do livro é aquele em que Marcos Aguinis investiga origens e desenvolvimento do tango. Uma das mais caras jóias do hoje combalido orgulho argentino, o tango sofreu para ser aceito pela “sociedade”. Exemplo perfeito daquele complexo de inferioridade que já mencionamos acima. Foi necessário ocorrer a aprovação externa do tango para que este fosse finalmente abraçado pelo povo argentino como um todo e elevado ao patamar de bem cultural nacional inestimável. Oriundo do “arrabalde”, do subúrbio, gestado em mentes e corações “impuros” e renegados, o gênero foi primeiramente taxado de sexualmente apelativo, de insolente e inconveniente pelas classes mais altas. Mas o tango, como sagazmente nos mostra o autor, talvez seja uma das mais perfeitas representações do que é ser argentino: em tudo que carrega de dor, de esperanças, de ideologias dos múltiplos povos que se reuniram para formar o que hoje é a Argentina. O tango é essencialmente a miscigenação de almas e, talvez por isso, se perpetue através dos tempos, sofrendo transformações maiores ou menores, no coração de tantas e tantas gerações.

COMENTÁRIOS SOBRE O OBJETO EM SI

Ainda que nos últimos anos possamos notar uma crescente preocupação das editoras em ter um cuidado especial no aspecto físico de seus livros, raras vezes se viu no mercado editorial brasileiro um projeto gráfico tão belo mas, sobretudo, tão pleno de pertinência como o que nos oferece este O atroz encanto de ser argentino.

Não quero parecer fetichista, mas sob certo aspecto o livro já cumpre seu papel mesmo sem ser lido. Porque para aquele que simplesmente o manuseia, sem dele sequer ler uma frase, o livro já se oferece rico em possibilidades simbólicas.

Na capa, contra-capa e lombada predominam tranqüilas as cores branca e azul-clara, que remetem obviamente à albiceleste bandeira argentina, e de alguma forma preparam as emoções do leitor para o que ele irá encontrar à frente.

O papel utilizado na impressão, como nos adverte uma pequena nota ao final do livro, é um novo produto de uma companhia brasileira, um papel reciclado que, ainda segundo a nota, tem parte de sua composição proveniente de uma cooperativa de catadores de papel, e reverte uma porcentagem da renda gerada com sua comercialização para o sustento de uma organização não-governamental que apóia projetos socioambientais. Numa época em que, tanto cá como lá, não suportamos mais ouvir a cantilena do sacrifício de tudo e de (quase) todos em nome exclusivamente de responsabilidades fiscais, que na maior parte das vezes esgotam-se em si mesmas, uma iniciativa empresarial como essa, com intenções ecológico e socialmente responsáveis, não deixa de ser um bom indicativo. Mas podemos tomar a adoção desse papel reciclado como uma mensagem metafórica — simpática não só aos argentinos mas também a todos aqueles povos que, como nós, sabem o que é viver numa espécie de inesgotável crise social — de que vale a pena insistir, lutar, se reinventar. Há e sempre deve haver esperança de renascimento, mesmo quando as coisas parecem ter sido arremessadas ao abismo infinito.

Mas o detalhe, ainda para falar apenas da parte física do livro, que mais chama a atenção é mesmo a capa. Com rara felicidade se decidiu que a capa seria prateada, de um prateado brilhante, o que evoca a viagem etimológica que Aguinis promove a respeito do vocábulo Argentina: prata que seduziu e atraiu milhões de pessoas de todo o mundo, aguçando ganâncias e rivalidades, prata que deu nomes e se fixou para sempre no imaginário argentino, também como sinônimo de dinheiro. Mas a prata brilhante da capa é também um quase-espelho, volta-nos uma imagem um tanto turva, pouco definida, mais adivinhada que exata. É, penso eu, a grande chave de todo o livro. É o convite definitivo à reflexão: em dois dos sentidos que a palavra refletir comporta: pensar, meditar sobre algo, mas também espelhar.

Quem lê esse Atroz Encanto de Marcos Aguinis vê o quão imbecil é essa rivalidade que durante anos e anos foi sendo erguida entre brasileiros e argentinos, vê, repito, quantos são os pontos, positivos e negativos, de contato entre nossos dois povos. Me ocorreu várias vezes durante a leitura que este deveria ser um livro entusiasticamente recomendado a estudantes do ensino médio e superior: talvez assim pudéssemos ver finalmente pulverizada a muralha que esconde brasileiros de argentinos e vice-versa. Talvez assim víssemos nascer uma nova e única nação, construída sobre o verdadeiro e belo sentido da palavra hermano/irmão.

Para retomar A Nuvem, lembremos da luta pela preservação da memória que o filme apresenta. O embate se dá com o novo, que se coloca de forma incisiva, inapelável, apagando violentamente qualquer vestígio de lembrança de pessoas, de eventos, da História. Não se trata de uma luta pelo conservadorismo, mas tão-somente pela preservação da identidade, pela possibilidade do auto-conhecimento. Na verdade, este é um desafio comum a argentinos e brasileiros. É como se ambos devessem aceitar o novo, mas pesando-o, julgando-o, recuperando também o que de bom oferece o passado, as origens comuns, e, por meio deste retorno, construir uma história única. Uma história na qual gigantes adormecidos acordam de um profundo pesadelo e apresentam-se ao mundo como irmãos fortes, capazes de enfrentar juntos as turbulências do presente.

P.S.: Quem quiser conhecer melhor Marcos Aguinis pode acessar sua página na internet, em www.aguinis.net. Entre outras informações, pode-se ter uma idéia de sua vasta produção literária, que é composta por mais de vinte livros, divididos em ensaios, romances, contos e biografias.

Escrito por Ronoc ¦

(*) Texto publicado originalmente em janeiro de 2003, no número 11 da (agora finada) revista eletrônica Rabisco.

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Pitada de sal #16

10 de julho de 2010 - 10:05 am

“Avilo: esgoto do mundo?, fim da cauda do rio onde a chuva faz as vinganças dela? Chuva já não era chuva!, até nós aqui chegamos de meter respeito nos bródas moçam- bicanos, mesmo eles especialistas das enchentes. As costuras do céu tinham rebentado e o costu- reiro-anjo tava de férias — e nós aqui, a aguentar as aquáticas consequências: mais calamidade menos calamidade, quem quer mesmo saber? Internacionalmente somos mais destacados é na guerra e na fome, única chuva que lhes interessa vir aqui sofrer é chuva petroleo-diamantífera, tás a captar, uí?, outras chuvas das lamas dos mosquitos gordos de matar ndengues na febre das madrugadas, ou mesmo chuva do sorriso repentino e rebentado dos alcatrões de nunca mais lhes consertarem, ou chuva molhada nas nenhumas tendas e telhas dos deslocados provinciais da nossa guerra gorda e engordante, essas são chuvas mais próprias pra pobres, e essas ninguém veio aqui pôr pele dele pra ser salpicado na visão dos olhos: andar já era nadar, conduzir já era navegar, viver já era só sofrer. Nosso povo mesmo é que me causa espanto no coração: rir é rir, um ato labial de para-sempre, e rir não só pra dentro, mas de dentro pros outros também, pra atingir e tingir a vida. Agora parece vou ter que te falar isto: aqui a vida é que está a ser adoptada, fosse uma criança d’olhos bem ramelados que você no olhar lhe busca e encontra a ternura — aí você lhe gosta, lhe habitua. Aqui a vida parece uma criança enteada que lhe aceitamos em casa, ela a fugir da guerra…”

O escritor angolano Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki (palavra umbundu, uma das línguas oficiais de Angola, que signfica “aquele que enfrenta desafios” ou “guerreiro”), em seu mais recente livro lançado no Brasil, Quantas madrugadas tem a noite (São Paulo: Leya, 2010, p.21).

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Na Companhia do Luiz

5 de julho de 2010 - 7:16 am

Grandes editores do passado — como os lendários José Olympio e Jorge Zahar — não tiveram às suas mãos essas maravilhas da comunicação que existem hoje, como a internet e um de seus subprodutos mais difundidos, o blog. Não puderam, portanto, fazer o que tem feito há algumas semanas Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras, no recém-inaugurado Blog da Companhia.

Não conheço pessoalmente o Luiz (não sei se é simpático, humilde, generoso, ou arrogante, pretensioso, cheio de si — ou se uma mistura de tudo isso e de outros infindáveis ingredientes, como a quase totalidade de nós, seres terrenos). Conheço a objetivação de seus sonhos, de seu trabalho (e do de todas as pessoas que estão a seu lado): seus livros. E isso me basta para sentir por ele uma profunda e respeitosa admiração. Quem é do meio (de que vertente for: editorial, comercial, autoral, crítica) sabe o quanto de espírito kamikaze está presente numa pessoa que conscientemente se predispõe a viver de livros no Brasil. Assim, observar no que Luiz transformou essa Companhia nesses vinte e quatro anos de existência, observar a qualidade e esmero que transbordam de cada uma das milhares de páginas trazidas a público todos os meses por sua editora, parece quase como assistir a um dos trabalhos de Hércules sendo executado bem em frente aos nossos olhos.

Quem consegue observar isso — e entender isso — pode ter um vislumbre do privilégio que é poder conhecer, semanalmente, alguns dos episódios mais curiosos, tocantes e surpreendentes que marcaram e vem marcando a trajetória deste homem dos livros.

Não quero me estender, porque isto aqui não era para ser uma hagiografia — e se ficou parecendo, foi porque perdi a mão, inábil que sou. Quero apenas deixar sublinhada com ênfase (e por isso vale a redundância) a sugestão para que todos aqueles que amam o livro aproveitem essa oportunidade de conhecer um de nossos maiores editores vivos. Fica também a sugestão — e a torcida — para que mais editores brasileiros copiem a iniciativa da Companhia e abram suas casas para o público leitor. Farão um bem incalculável ao culto do livro e da leitura em nosso país.

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Pitada de sal #15

4 de julho de 2010 - 11:43 am

“As ações que geram blowback em geral são totalmente ocultas do público americano e da maioria de seus representantes no Congresso. Isto significa que quando civis inocentes se tornam vítimas de um ataque de retaliação, eles são inicialmente incapazes de pôr isso num contexto ou de compreenderem a seqüência de acontecimentos que levou àquilo. Em sua definição mais rigorosa, blowback não significa meras reações a acontecimentos his- tóricos, mas a operações clandestinas realizadas pelo governo dos EUA com o objetivo de derrubar regimes estrangeiros, ou de obter a execução de pessoas que os Estados Unidos querem ver eliminadas por exércitos estrangeiros ‘amigos’, ou de ajudar a lançar operações de terrorismo de Estado contra populações além-mar. O povo americano pode não saber o que é feito em seu nome, mas aqueles que são alvos certamente sabem — inclusive os povos do Irã (1953), Guatemala (1954), Cuba (de 1959 até hoje), Congo (1960), Brasil (1964), Indonésia (1965), Vietnã (1961-73), Laos (1961-73), Camboja (1961-73), Grécia (1967-74), Chile (1973), Afeganistão (de 1979 até hoje), El Salvador, Guatemala e Nicarágua (anos 1980), e Iraque (de 1991 até hoje), para citar apenas os mais óbvios.”

Chalmers Johnson, professor emérito da Universidade da Califónia, San Diego, consultor da CIA entre 1967 e 1973, abre dessa forma seu provocativo e premonitório (foi lançado em 1999 no EUA e anteviu muito do quem vem ocorrendo no cenário das relações internacionais norte-americanas, inclusive, de certa forma, o 11 de setembro) Blowback: os custos e as conseqüências do império americano (Rio de Janeiro: Record, 2007, p.9; tradução de Bruno Casotti).

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Frozen noir

1 de julho de 2010 - 7:06 am

Para aqueles que ao final da saga Millennium sentem-se meio órfãos, lamentando não só a perda humana que representou a morte precoce do escritor Stieg Larsson, mas também a impossibilidade de ver seu projeto se desenvolver em sua totalidade (pretendia escrever pelo menos 10 romances com a dupla Blomkvist & Salander), fica a dica (como diria meu amigo Diego Blanco): (re)des- cubram Henning Mankell. Também sueco, também romancista policial (mas não só, já que é dramaturgo e escreve também para o público infanto-juvenil), Mankell acaba de ter seu quinto livro lançado por estas plagas: Guerreiro Solitário (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 488p.; na tradução de George Schlesinger).

Mas, como sentenciariam os sábios, do começo é que se deve começar. Portanto, falemos do primeiro romance de Henning Mankell publicado no Brasil, Assassinos sem rosto (São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 312p.; na tradução de Beth Vieira).

Ao contrário dos livros de Larsson, considerados policiais apenas por falta de classificação mais apropriada (Os homens que não amavam as mulheres, o primeiro da trilogia, trata de crimes econômicos, tráfico de influência política, questões morais, embates familiares etc., e tem como protagonistas um jornalista e uma jovem hacker que trabalha numa empresa de segurança privada), Mankell trabalha com a estrutura por excelência do policial clássico: delegacia, tribunal, tiras e bandidos. Kurt Wallander — o personagem principal e que aparece em outros 8 livros — é um investigador experiente  de uma pequena cidade litorânea sueca, Ystad. Aos 43 anos (mesma idade que Mankell tinha à época em que escreveu o livro, 1991), observa com crescente preocupação os rumos que seu país e seus conterrâneos tomam.

Mankell explora também um elemento praticamente indispensável dos romances noir: a solidão do protagonista. Afinal, o fato de sentirem-se à margem das sociedades cujas entranhas devem revirar dota os investigadores ficcionais daquilo que os antropólogos chamariam o olhar de estrangeiro — capaz de notar os detalhes que escapam a todos nós, domesticados pelo dia-a-dia, acostumados a rotinas, hábitos, atitudes e comportamentos que, para alguém de fora, soam peculiares, provocam interesse, exigem decifração.

Assassinos sem rosto abre com um crime brutal: um casal de fazendeiros idosos é atacado em sua casa com requintes de violência nunca antes vistos naquela região — uma cidade pequena, como dissemos. Aliás, a percepção de uma escalada nos níveis — e uma transformação nos tipos — de violência é algo que provoca mal-estar em Wallander (um policial mais acostumado a lidar com beberrões, brigas entre vizinhos e atropelamentos), e o faz perguntar-se diversas vezes ao longo do livro “Para onde está indo este país?”.

O que se destaca em Assassinos sem rosto não é uma trama altamente intrincanda e reviravoltas surpreendentes, de tirar o fôlego, mas sim uma paisagem, um clima de desolação, melancolia e abandono que se adensa em torno dos fatos e dos personagens, e dita o ritmo da história. É quase como se o crime ficasse num plano secundário, eclipsado pelo estupor diante dos mistérios e descaminhos da natureza humana. Não por acaso, o livro é permeado de idas e voltas de seu protagonista aos temas que mais o oprimem: o casamento recentemente desfeito, a incapacidade de se comunicar com sua filha, e também com seu velho pai; a desconfortável sensação de estar envelhecendo, e de não conseguir mais compreender o espaço e o tempo em que vive.

A questão política — no caso, o “descontrole” na política de concessão de asilo para estrangeiros que, martela Wallander, confunde bons e maus cidadãos, abrindo as portas do país para mafiosos e ex-torturadores de antigos regimes ditatoriais — ganha tom acentuado na narrativa de Mankell. O ódio racial, e todos os crimes a ele ligados, caracteriza outro pólo de tensão no romance, que avança oferecendo pistas falsas, embaralhando hipóteses, confundindo e atraindo o leitor até as páginas finais.

Mankell é daquela estirpe de escritores que busca ser coerente com as palavras que assina. Jovem, envolveu-se com todo tipo de manifestação política (contra a Guerra no Vietnã, contra as guerras coloniais na África etc.). Hoje, já na casa dos 60, mantém no ativismo político uma das vertentes mais importantes de sua vida. Por isso, não foi assim tão surpreendente descobrir o nome de Henning Mankell entre os presentes nas embarcações da frota humanitária turca que procurou furar o bloqueio israelense à Faixa de Gaza no final de maio. Vivendo entre a Suécia e Moçambique (onde mantém, desde 1986, um grupo teatral na capital, Maputo), Mankell mantém uma ligação especial com o continente africano, cenário de algumas de suas obras.

Esse filho de juiz que desde pequeno sentiu fascínio por compreender os mecanismos da justiça; que, ainda criança, foi abandonado pela mãe e encontrou na escrita um refúgio onde poderia moldar o mundo de seus sonhos; que, aos 16 anos, cansado da monotonia da escola, resolveu abandonar os estudos e se tornar marinheiro (trabalhando como estivador por 2 anos); tornou-se um escritor habilidoso, multifacetado e aclamado em mais de 30 países globo afora. Trata-se, seguramente, de um autor que o leitor brasileiro — sobretudo os fãs do gênero policial — precisa conhecer (ou conhecer melhor).

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Pitada de sal #14

22 de maio de 2010 - 8:23 am

“Os subterrâneos onde se escava o carvão são uma espécie de mundo à parte, e é fácil viver toda uma vida sem jamais ouvir falar dele. É provável que a maioria das pessoas até prefira não ouvir falar dele. E, contudo, esse mundo é a contraparte indispensável do nosso mundo da superfície. Praticamente tudo que fazemos, desde tomar um sorvete até atravessar o Atlântico, desde assar um filão de pão até escrever um romance, envolve usar carvão, direta ou indiretamente. Para todas as artes da paz, o carvão é necessário; e, se a guerra irrompe, é ainda mais necessário. Em épocas de revolução o mineiro precisa continuar trabalhando, do contrário a revolução tem que parar, pois o carvão é essencial tanto para a revolta como para a reação. […] Para que Hitler possa marchar em passo de ganso, para que o papa possa denunciar o bolchevismo, para que os fãs de críquete possam assistir a seu campeonato, para que os ‘Nancy poets’ possam dar palmadinhas nas costas um do outro, o carvão tem que estar disponível. […] O mesmo acontece com todos os tipos de trabalho manual; eles nos mantêm vivos e nos esquecemos totalmente de sua existência. Mais do que qualquer outro, talvez, o mineiro é o típico trabalhador manual, não só porque seu trabalho é tão absurdamente horrível, mas também porque é tão vitalmente necessário, por assim dizer, que somos capazes de esquecê-lo, tal como nos esquecemos do sangue que corre em nossas veias.”

George Orwell em trecho de seu O caminho para Wigan Pier (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp.53-55; na tradução de Isa Mara Lando).

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Livros em movimento #1

16 de março de 2010 - 8:04 am

Cada vez mais comuns, os curtas promocionais sobre livros proliferam na internet. Alguns chegam realmente a ser sensacionais, não somente cumprindo com perfeição o objetivo de despertar o interesse sobre o livro em questão, mas indo além, constituindo-se em pequenas obras de arte. Algumas editoras brasileiras ensaiam entrar na onda, mas por enquanto restringem-se ainda apenas a vídeos informativos, sem grandes arroubos de criatividade — espero que sigam o caminho e apostem mais nessa vertente de comunicação. Abaixo, para inaugurar em grande estilo esta nova seção, um curta promocional sobre o New Zealand Book Council, que tem como personagem principal o livro Going West, do escritor neozelandês Maurice Gee.

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Antes do ‘fim dos livros’, chega ‘Sabático’

13 de março de 2010 - 10:35 am

Chegou-se a anunciar que ele vem para recuperar o espaço, e a missão, do tantas vezes saudado (e tão saudoso, para aqueles que tiveram a oportunidade de o ler) Suplemento Literário, que circulou entre 1956 e 1966, idealizado por ninguém menos que Antonio Candido e dirigido por Décio de Almeida Prado. Cedo ainda para saber se realmente é para tudo isso a chegada do novo Sabático (que, como o próprio nome indica, circula aos sábados), caderno exclusivamente literário lançado hoje pelo jornal O Estado de S. Paulo — que inaugura reformulação gráfica e de conteúdo (no papel e on-line) neste domingo, 14/03/2010.

Com o caderno em mãos há algumas horas, já podemos ensaiar breves considerações. Em termos de design, nada de surpreendente — na verdade, esperava bem mais, pelo que o jornal tem dito sobre a reformulação gráfica. Em termos de espaço — que, afinal, é algo que conta bastante, já que espaço nas publicações é dinheiro — percebemos o diferencial: oito páginas. Para um sábado, é sim um grande avanço, já que o jornal reservava nesse dia 2 ou 3 páginas para os livros. Mas resta saber como ficará o caderno cultural do domingo, quando o campo literário predominava. Na somatória dos dois dias, saberemos se o público leitor realmente sai ganhando ou se permanecemos no zero a zero.

Destaque desta primeiríssima edição do Sabático, Umberto Eco concede entrevista em que fala sobre sua nova obra (em parceria com Jean-Claude Carrière), Não contem com o fim do livro (Rio de Janeiro: Record, 2010, 272p.; tradução de André Telles). Há também um conto inédito (parte de um livro a ser lançado no segundo semestre) de Ronaldo Correia de Brito, autor do premiado Galiléia. E, ponto alto, reprodução de trecho (a íntegra pode ser lida aqui) da crítica de Antonio Candido sobre Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, na estréia do Suplemento, em 06/10/1956.

Por enquanto, fico com o Sérgio Rodrigues. Mesmo sem saber ao certo que caminhos o Sábatico percorrerá, numa época em que só se fala no possível desaparecimento dos livros no formato que o conhecemos, em tempos em que os cadernos literários, estes sim, parecem à beira da extinção, só o frisson em torno do lançamento do novo suplemento — e o esperado aumento de atenção concedida aos livros — já é algo a ser comemorado.

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Pitada de sal #13

8 de março de 2010 - 4:15 pm

“Todos os impérios que já existiram, em seus discursos oficiais, afirmaram não ser como os outros, explicaram que suas circunstâncias são especiais, que existem com a missão de educar, civilizar e instaurar a ordem e a democracia, e que só em último caso recorrem à força. Além disso, o que é mais triste, sempre aparece um coro de intelectuais de boa vontade para dizer palavras pacificadoras acerca de impérios benignos e altruístas, como se não devêssemos confiar na evidência que nossos próprios olhos nos oferecem quando contemplamos a destruição, a miséria e a morte trazidas pela mais recente mission civilisatrice.”

Edward W. Said em sua mais famosa obra, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.17; na tradução de Rosaura Eichenberg).

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A China de Paulo (e de Ricardo)

20 de fevereiro de 2010 - 9:39 am

Paulo, executivo de um grande banco multinacional, com sede em Londres e presença em boa parte do globo, vive um momento de grande expectativa em sua carreira. A matriz do banco elabora uma ousada entrada no mercado chinês e busca em seus quadros os melhores nomes para levar o projeto à frente. O nome de Paulo destaca-se.

Aliás, o nome destaca-se até não mais poder. Isto porque Paulo, que tem como secretária a Paula (filha do seu Paulo e tia do Paulinho), e conta com o apoio da Paula do RH (que, por sua vez, responde diretamente ao presidente do banco no Brasil, o irlandês Paul), faz de tudo para ser escolhido pelo figurão Paulson, em Londres, para chefiar o Projeto China. No meio do caminho, contudo, sofre com as fofocas que correm pela empresa: a Paula cochicha com a Paula que o Paulo se veste mal, o Paulo ri com o Paulo sobre as pretensões do chefe Paulo. Tudo isso só poderia ocorrer, claro, em São Paulo…

A princípio a estratégia de Ricardo Lísias em seu O livro dos mandarins (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, 344p.) pode deixar o leitor confuso (um efeito certamente pretendido), mas logo o torvelinho em que o autor nos coloca começa a jogar a favor da trama. Egocêntrico, auto-centrado, Paulo enxerga o mundo como um espelho. Tudo e todos estão lá para validar sua trajetória, existindo meramente para evidenciar sua supremacia. Vale dizer: alguns dos outros poucos nomes que aparecem no livro são o de Fernando Henrique Cardoso (ídolo absoluto de Paulo), Mao Tse-Tung e Godói (“esse filho da puta”), o grande antagonista da trama. O nome vai ganhando variações, incorporando adjetivos, ou transmutando-se conforme a história avança: “o homem Paulo”, “profissional brilhante”, “Maozinho”, Paul*, depois Pau**, até chegar ao enigmático e despersonalizado *****.

Utilizando como recurso estilístico o maçante jargão corporativo, o romance de Ricardo Lísias é o registro de uma existência alienada. Retire o ambiente empresarial e os infinitos estratagemas de Paulo para ganhar prestígio e galgar postos mais altos dentro da hierarquia do banco e o que teremos? Nada. Nenhum amigo, nenhum familiar — as pessoas que se sucedem na trama são como degraus, peças num jogo estúpido de um único jogador. O único traço que o distingue como indivíduo é uma dor nas costas que o acompanha desde criança. A única característica que o faz humano (e não apenas um apêndice da corporação) é a dor.

Outro recurso utilizado com bastante habilidade pelo autor, a reiteração de informações (sobre a dor, sobre a futura descoberta da cama Ceragem, sobre as características profissionais de Paulo ou de seus colegas de empresa), que voltam e voltam pontuando o avanço da história, parece ser remédio para um “leitor esquecido”, pouco antento, que está “sempre chegando” ou que está pouco se lixando para o que está sendo dito. Parece indicar um diálogo autista com o mundo, em que o narrador tem pouca segurança de que aquilo que diz está sendo realmente recebido pelos possíveis leitores. Um discurso em que pouco importa o que o receptor está achando do que está sendo dito. Importa falar, exprimir, “colocar para fora”, e não necessariamente se comunicar. Parece indicar a absoluta solidão em que Paulo — perdido em meio a seus infinitos reflexos — se encontra. É como se o narrador emergisse da consciência atual, passada e futura do protagonista. O resultuado é um fluxo narrativo entrecortado, confuso, cheio de retornos e tautologia.

Ricardo Lísias, por Leonardo Wen / Folha Imagem (reprodução)

Sob certo ponto de vista, O livro dos mandarins pode não ser das leituras mais agradáveis — no sentido de uma leitura “edificante”, que apresenta a cada esquina de parágrafo respostas e alívios morais para o leitor. Não, nesse sentido não é definitivamente um livro agradável. Pelo contrário, ele incomoda, angustia, sacode e procura gerar esclarecimento (dando fim à verdade aparente, confortável, e trazendo à luz as milhares de facetas dela que se escondem atrás das certezas do dia-a-dia). É esse o projeto de Ricardo Lísias. E para levá-lo a cabo, o autor corre todos os riscos, indo até os limites, desafiando as fronteiras do que poderia ser considerado pelos mais apressados “chato”, “maçante”, “esquemático”.  O fato é que há diversos sabores a serem apreciados no mundo: o amargo, o azedo, o ácido, dependendo da combinação e da habilidade do chef, podem dar origem a pratos de valor inigualável. E até agora, Ricardo Lísias tem provado ser um grande chef.

Escrito por Ronoc ¦

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Trecho: “Para aproveitar melhor as poucas horas de sono que lhe restam, ele precisa organizar a cabeça. Em primeiro lugar, o projeto exige isso e aquilo dele e, para cumprir essas metas, o branquelo deve aprofundar seu conhecimento sobre o país para onde foi enviado. Os chineses são realmente complexos, já lhe tinham dito. Depois, um sono curto mas profundo logo virá. Basta que ele crie uma estratégia de ação, organize os horários e a maneira de agir e desenvolva um plano de diálogo que lhe permita otimizar os lucros do banco […] o bom executivo sabe que de tudo é importante sempre tirar algum tipo de enriquecimento pessoal.” (p. 132)

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Sobre guerra, livros e… tortas!

19 de fevereiro de 2010 - 8:46 am

Decidi finalmente ler A sociedade literária e a torta de casca de batata, de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows (Rio de Janeiro: Rocco, 2009, 304p.), após ouvir amigos e colegas elogiarem algumas vezes o romance. E, bem, se você trabalha com livros e não dá ouvidos ao que seus colegas de profissão dizem sobre as leituras que estão fazendo, das duas uma: ou você tem um plano totalmente seu, rigorosamente independente, de leitura, ou é um chato de galochas — em ambos os casos, não sabe o que está perdendo…

Engraçado é que, deixado à própria sorte, o livro pode simplesmente passar despercebido, sumir em meio à babélia das livrarias. Isto porque ao folhear rapidamente ou dar uma espiada nas orelhas de A sociedade literária… você talvez se veja encurralado pela simplória mas irresistível pergunta “Mais um romance sobre a Segunda Guerra Mundial?” e passe adiante.

Poderíamos começar respondendo para nós mesmos que enquanto nascerem seres humanos, surgirão com eles, dia após dia, novos e talvez tão ou mais interessantes pontos-de-vista sobre questões do passado. Outros seriam ainda mais contundentes e lembrariam que apenas no dia em que pudermos honestamente dizer que nenhum conflito armado deixa suas lamentáveis marcas sobre a Terra, somente nesse dia poderemos dizer sem risco de engano que talvez seja mesmo desnecessário revisitar antigos conflitos atrás de lições. O caso pede uma abordagem mais serena: afinal, A sociedade literária… defende a si mesmo de forma mais do que competente.

A sociedade literária… é, como o próprio título sugere, um livro sobre livros, sobre o amor à leitura, sobre o poder dos livros e das histórias de elevarem o espírito humano e de, no extremo, darem sentido à nossa existência. É, sim, uma obra sobre a Segunda Guerra Mundial, mas para começo de conversa, o centro da ação não se passa em nenhuma capital européia, nem no front russo ou japonês. O palco é Guernsey, uma das ilhas do Canal da Mancha que fazem parte do Império Britânico e que permaneceram ocupadas pelos alemães (completamente isoladas do mundo) durante cinco anos. A mudança de foco geográfico, por si só, já traz um frescor à trama, colocando em evidência personagens, paisagens e situações que não estamos acostumados a ver em romances históricos sobre o período.

Mary Ann Shaffer (direita) e sua sobrinha Annie Barrows, que a ajudou a concluir "A sociedade literária..."

Estamos em 1946. A guerra acabou há pouco mais de um ano, e o cenário ainda é de desespero e destruição; indivíduos e famílias tentam se reerguer, procurando superar as atrocidades que viveram ou presenciaram, e tentando esquecer as vidas que deixaram para trás, os familiares que jamais reencontrarão. Somos apresentados a Juliet Ashton, jovem escritora em ascensão, que durante a guerra assinou uma coluna em um grande jornal inglês encarnando uma correspondente que preferia guardar um olhar otimista e bem-humorado sobre o horror que assolava o mundo. Ciente de que seu trabalho ajudou muitos a enxergarem uma luz no fim do túnel durante os momentos mais sombrios, Juliet, contudo, está cansada e quer novos rumos para sua carreira. Durante uma turnê de divulgação do livro que reuniu suas colunas, a escritora recebe uma inesperada carta de um certo Dawsey Adams, residente de Guernsey, que diz ter chegado à autora por ter adquirido um livro usado que pertencera a Juliet (e que continha seu nome e endereço numa das capas). Dawsey escreve porque adorou o livro e gostaria de saber mais sobre seu autor. Dessa aparentemente simples demanda nasce uma intensa troca de correspondências que conduzirá toda a história e nos apresenterá seus personagens. Pelas cartas, conheceremos um grupo de fazendeiros (do qual Dawsey faz parte) que a princípio pouco sabem uns dos outros, mas que a Ocupação Nazista obrigará a se aproximar. Gente humilde, simples, cheia de dignidade e vontade de viver. É graças a esse apego à vida (que leva inclusive à subversão) que o grupo vivencia um episódio que transformará cada um dos envolvidos. Como consequência, surgirá a Sociedade Literária do título. Podemos dizer que a explicação completa sobre a fundação da sociedade — bem como o porque do “Torta de casca de batata” — é um dos grandes trunfos do romance, e portanto o guardaremos para que cada um o saboreie a seu tempo.

Mary Ann Shaffer, falecida em 2008, sem ver o enorme sucesso que seu livro alcançaria em todo o mundo, teve uma vida dedicada aos livros: foi bibliotecária, livreira e editora. Assim, não poderia mesmo ter deixado o planeta sem acrescentar à infinita biblioteca da humanidade uma obra que levasse sua assinatura. Annie Barrows, autora de livros infantis (nenhum deles traduzido no Brasil até o momento), sobrinha de Mary Ann, foi a responsável pela conclusão da obra, quando sua tia adoeceu.

A dupla criou um daqueles livros que, quando percebemos que as páginas vão chegando ao fim, começamos a ler mais lentamente porque já antecipamos a dor de ter de fechar as capas e retirar-nos da história. Que tenham conseguido fazer isso escrevendo sobre um tema pretensamente já tão visitado constitui um feito digno de ser divulgado.

Escrito por Ronoc ¦

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Espionagem a serviço da literatura

18 de fevereiro de 2010 - 4:00 pm

Todo texto literário que se preze conta não uma, mas inúmeras histórias simultaneamente. Enquanto umas correm na superfície, outras estão entranhadas na carne das palavras. Assim, embora Luis Fernando Verissimo narre em seu mais novo livro — Os Espiões (Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2009, 142p.) — as peripécias e trapalhadas de uma trupe de amigos convertidos da noite para o dia em investigadores nada profissionais, fala também sobre a indomável necessidade que sentimos de povoar de fantasia a realidade que nos cerca. E do desejo de exprimir, de levar aos outros essas realidades paralelas, nossos mundos sonhados. Afinal, como alguém já deve ter dito, somos todos filhos de Sherazade, contando histórias uns para os outros para tentar escapar das garras da morte.

Os Espiões apresenta Verissimo como o conhecemos tão bem: inteligente, bem-humorado, econômico e certeiro. Alguns sentenciam que escrever é apagar, cortar, suprimir; pois bem, talvez não exista escritor no Brasil que faça isso de forma tão eficiente quanto Verissimo. Sem perder o pulso da trama, sem sonegar nenhum prazer ao leitor, compõe um texto limpo, direto e ao mesmo tempo instigante e saboroso.

A história se desenrola entre Porto Alegre e uma provavelmente fictícia pequena cidade do interior chamada Frondosa, sendo narrada por um faz-tudo de uma obscura editora da capital gaúcha. Frustrado em sua vida pessoal e profissional, acostumado a passar metade da semana bebendo e a outra tentando se recuperar da ressaca, o sujeito recebe certa vez um envelope branco contendo um trecho xerocado de um manuscrito. Encarregado, entre outras coisas, de responder aos aspirantes a escritores, indicando se os originais enviados interessam ou não à editora, o narrador — normalmente azedo e cético quanto à capacidade humana de produzir relatos realmente interessantes — vê-se tragado pela história que tem em mãos. Revelando as desventuras de uma tal Ariadne, o manuscrito apresenta-se como um relato biográfico que encerra ao mesmo tempo denúncias, sofrimento e uma espécie de despedida de um mundo que se tornou cruel demais para ser suportado. Pronto! É o suficiente para fazer germinar a semente da obsessão. Determinado a descobrir mais sobre a autora do manuscrito, o protagonista vai arrastar a si e a seus companheiros mais próximos para uma jornada de improváveis e risíveis aventuras pelo mundo da espionagem.

Sem estragar qualquer surpresa, podemos dizer que, como em tantos dos textos de Verissimo, o ponto alto do livro é a galeria de personagens: os convivas impagáveis que maquinam planos para desfazer o novelo de um mistério com cheiro de romance noir -B enquanto se embriagam, mentem para si próprios e disparam absurdos um atrás do outro; o falso professor que vive de enxovalhar o meio literário e que vai fazer as mais estapafúrdias palestras sobre assuntos dos quais não conhece uma linha; o padre que por ser surdo obriga os fiéis a gritar seus pecados, transformando as confissões em um big brother interiorano; entre tantas e tantas figuras que vão temperando o enredo aparentemente simples e nos envolvendo linha a linha.

De maneira sintética, à la Verissimo: Os Espiões é para ler e se divertir!

Escrito por Ronoc ¦

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Trecho: “O Dubin dizia que a má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à magnífica compulsão. Dizia isso para me provocar, nas nossas intermináveis discussões na mesa do Espanhol, mas naqueles dias, enfeitiçado pelos textos da Ariadne e com minha misantropia natural dissolvida em água mineral, eu lhe dei razão. Todos nós merecíamos pertencer à irmandade dos que escrevem, só por querer.” (p.84)

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Pausa para um lamento

14 de fevereiro de 2010 - 9:34 am

Às vezes, coisas terríveis acontecem para pessoas dotadas de uma bondade quase ingênua, que seriam incapazes de fazer mal ao pior dos seres sobre a Terra — talvez, isto sim, ainda estendessem a mão ao mais ignóbil dos homens, e lhe dirigissem palavras e intenções conciliatórias, generosas e cheias de uma esperança genuína na redenção humana. Sem qualquer noção das consequências, essas pessoas que carregam dentro de si uma semente do que poderia fazer nossa existência ter algum sentido deixam-se enredar por um destino traiçoeiro que as espreita em cruel silêncio. E quando o passo que se torna tropeço acontece, não há nada mais a ser feito. Só luto. Por que tantas vezes o mundo se transforma nessa armadilha gigante é um mistério trágico que nos consumirá até o fim.

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Pitada de sal #12

17 de janeiro de 2010 - 2:16 pm

Felipe Fernández-Armesto (1950- )“As sociedades jamais teriam se distanciado umas das outras se não fossem os desbravadores que, por rotas divergentes, as conduziram para ambientes contrastantes e regiões separadas. Elas nunca teriam restabelecido relações entre si — e se modi- ficado mutuamente — sem gerações poste- riores de exploradores, que descobriram as rotas de contato, de comércio, de conflitos e de contágio responsáveis por reuni-las. Os exploradores foram os engenheiros das infra-estruturas da história, os construtores das estradas da cultura, os forjadores de vínculos, os tecedores de redes.”

Felipe Fernández-Armesto abrindo os caminhos para seu delicioso Os desbravadores: uma história mundial da exploração da Terra (São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.14; na tradução de Donaldson M. Garschagen e com capa de Mariana Newlands).

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Livros que cabem no bolso

21 de outubro de 2009 - 4:30 pm

Para felicidade geral do público leitor e de seus desvalidos bolsos, mais uma grande editora brasileira entra no segmento das edições populares, mais conhecidas como pocket books ou livros de bolso. Pertencendo, desde 2005, ao poderoso grupo espanhol Prisa-Santillana, a Editora Objetiva aproveita os braços internacionais a que se encontra ligada para trazer para o país mais um selo, o Ponto de Leitura (que se une às tradicionais marcas Suma de Letras e Alfaguara).

A fornada inaugural apresenta 12 títulos, de Stephen King (Carrie, A Estranha, O Iluminado e A Zona Morta) a James Redfield (A profecia celestina), passando por Nelson Motta (Noites Tropicais) e Luis Fernando Verissimo (O clube dos anjos), entre outros, com preços que vão de R$9,90 a R$29,90.

No final de 2007, a Objetiva havia manifestado interesse nesse nicho de mercado bastante explorado sobretudo nos EUA e Europa, mas que no Brasil somente há pouco tempo vem recebendo investimentos significativos. Com exceção da pioneira L&PM, cuja força repousa justamente no livro de bolso, apenas nos últimos anos os dois maiores grupos editoriais brasileiros — Companhia das Letras e Record — lançaram selos específicos para pockets (Companhia de Bolso e BestBolso, respectivamente). A princípio, os planos da Objetiva apontavam para a aquisição da Martin Claret, mas o interesse levantou antigas suspeitas acerca da qualidade das traduções da pequena editora. A Objetiva/Santillana recuou, esperou 2 anos, para agora entrar com força total no mercado. Como a editora possui autores importantíssimos em seu catálogo, o leitor pode esperar bons lançamentos para os próximos meses.

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Pitada de sal #11

20 de outubro de 2009 - 8:07 pm

“Os marqueteiros transformam Peter Pan em seu flautista de Hamelin, fingindo libertar os jovens das restrições da disciplina adulta para lhes impor a disciplina do mercado de consumo. O flautista de Hamelin atraiu para longe as crianças da vila porque seus pais não lhe pagavam para livrá-los dos ratos. O flautista de Hamelin do mercado atrai as crianças porque seus pais são ‘guardiões’ que ficam no caminho da indução das crianças ao hall dos consumidores. Assim como o flautista da história fez, o mercado hoje em dia finge capacitar as crianças que seduz dizendo-lhes que elas ficarão potentes com a descapacitação de seus pais. Libertadas de pais possessivos, elas estão, na verdade, encarceradas nos corredores do shopping da mente juvenil.”

Benjamin R. Barber dissecando o mundo do hiperconsumo em seu Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos (Rio de Janeiro: Record, 2009, p.131; na tradução de Bruno Casotti).