Posts Tagged ‘literatura’

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A vida é um jogo

12 de dezembro de 2010 - 9:09 am

O grande jogo de Billy Phelan, de William KennedyAs ruas de Albany, capital do estado de Nova York, nos anos que sucederam a Grande Depressão formam o cenário deste romance que a editora Cosac Naify escolheu para apresentar — ou reapresentar, já que algumas de suas obras já haviam circulado por aqui na década de 1980 — ao público brasileiro o autor norte-americano William Kennedy. Com O grande jogo de Billy Phelan (São Paulo: Cosac Naify, 2009, 344p.), a editora deu início à publicação no Brasil do chamado Ciclo de Albany, conjunto de sete livros que têm a cidade como pano de fundo e as tor- tuosas relações entre seus habitantes como foco. À medida que escrevia as obras, o autor começou a perceber que elas constituíam “uma série aberta de narrativas não-seqüenciais, cada uma das quais se concentrava num único indivíduo que conduzia histórias alheias, cada uma delas escrita como obra capaz de se afirmar por si só, independente das demais do Ciclo; ainda assim, todos os livros se entrelaçavam” [1].

Neste primeiro ato, conhecemos o jovem Billy Phelan, uma “estrela” da noite de Albany, especialmente dos jogos que reúnem sua gente e animam sua sofrida existência. Seja nas pistas de boliche, nas mesas de pôquer ou de bilhar, ou ainda administrando as apostas nas corridas de cavalos, Billy é um exímio jogador. Do jogo vem seu sustento. No jogo exercita toda sua habilidade, aplica todo seu conhecimento.

Pouco a pouco, Kennedy vai nos deixando claro que nesta história o que está em jogo é a própria vida de Billy Phelan. O jogo tem suas regras: os códigos não escritos que regem as relações do submundo, os cógidos de honra e solidariedade que domesticam e influenciam as tensões sociais, unindo e afastando as pessoas; a linguagem do poder, que tem de ser compreendida desde cedo: Manda quem pode, obedece quem tem juízo… Afinal, o jogo tem seus donos. Senhores do mundo e do submundo de Albany, a família McCall domina a política, a economia e a jogatina da cidade. Quem quiser mover-se por qualquer um desses domínios — ou seja, quem quiser viver por ali — tem que lhes prestar vassalagem.

Mas deve ser assim sempre? Não haverá brechas por onde se mover, espaços a conquistar, caminhos alternativos a percorrer? É isso que Billy parece questionar durante todo o romance. Será o baixar a cabeça e aceitar o que se apresenta à sua frente a única saída? Mas, esperem, entrar nesse jogo não é para qualquer um. Sair derrotado de uma pista, de uma mesa, de um salão é uma coisa — mesmo que você saia com uma dívida impossível de saldar –; no grande jogo de Albany, o que se joga, como já dissemos, é o direito de existir. E Billy sabe disso muito bem.

O livro começa com Billy fazendo o impossível numa pista de boliche, acertando strike após strike e se aproximando magicamente da perfeição, que lhe escapa por um triz; e termina com Billy equilibrando-se entre forças poderosas que ameaçam lhe fechar todas as portas de sua cidade, tirar-lhe o oxigênio, quase como quem joga para fora de um aquário um peixe que passou ali toda a sua vida. Billy é sim um jogador nato. Conhece as regras do jogo. Conhece-as tão bem, que consegue subvertê-las, colocando-se acima delas. Jogando na defensiva ou sendo arrojado aos limites da imprudência, Billy tenta iludir e superar seus adversários, um a um, ou todos juntos, numa grande e intrincada disputa.

Logicamente, como já se disse e o próprio título enfatiza, Billy é o foco principal deste primeiro romance do ciclo. Mas há muito mais em O grande jogo de Billy Phelan. A relação pai-filho, que tantas obras-primas legou à literatura, ao cinema, à música ou a qualquer outra das artes, ocupa também aqui o papel de uma das molas propulsoras da trama. Seja na dolorosa ausência do pai de Billy, Francis Phelan, — personagem, aliás, que toma o centro de outro dos livros do ciclo de Albany, Ironweed, também lançado pela Cosac Naify –; seja na relação de outra figura importante, o jornalista Martin Daugherty, com seu pai, um escritor e dramaturgo que custou para ver sua obra ser reconhecida (algum paralelo com o próprio Kennedy, que também sofreu para obter reconhecimento?). Martin ainda atua como uma espécie de “narrador paralelo” da história de Billy, compondo um mosaico de vozes e reflexões que só faz tornar a obra ainda mais interessante de se ler.

– Ω –

Vale dizer que quem me indicou — já faz um bom tempo — O grande jogo de Billy Phelan foi meu amigo Diego Blanco. Todo reconhecimento para sua dica e também para sua persistência, porque foi graças a ela que pude finalmente conhecer William Kennedy. Aliás, quem quiser saber mais sobre o mundo da cultura, da política e da economia sob ângulos nada convencionais precisa ouvir o Num faz cabimento, podcast “de cunho anarco-partidário, sem fins lucrativos e desenvolvido por quatro caras que não têm o rabo preso com ninguém” que o Diego e outros três amigos (o Dionisius, o João e o Ricardinho) jogam nas teias da rede semanalmente. Realmente imperdível!

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Pitada de sal #16

10 de julho de 2010 - 10:05 am

“Avilo: esgoto do mundo?, fim da cauda do rio onde a chuva faz as vinganças dela? Chuva já não era chuva!, até nós aqui chegamos de meter respeito nos bródas moçam- bicanos, mesmo eles especialistas das enchentes. As costuras do céu tinham rebentado e o costu- reiro-anjo tava de férias — e nós aqui, a aguentar as aquáticas consequências: mais calamidade menos calamidade, quem quer mesmo saber? Internacionalmente somos mais destacados é na guerra e na fome, única chuva que lhes interessa vir aqui sofrer é chuva petroleo-diamantífera, tás a captar, uí?, outras chuvas das lamas dos mosquitos gordos de matar ndengues na febre das madrugadas, ou mesmo chuva do sorriso repentino e rebentado dos alcatrões de nunca mais lhes consertarem, ou chuva molhada nas nenhumas tendas e telhas dos deslocados provinciais da nossa guerra gorda e engordante, essas são chuvas mais próprias pra pobres, e essas ninguém veio aqui pôr pele dele pra ser salpicado na visão dos olhos: andar já era nadar, conduzir já era navegar, viver já era só sofrer. Nosso povo mesmo é que me causa espanto no coração: rir é rir, um ato labial de para-sempre, e rir não só pra dentro, mas de dentro pros outros também, pra atingir e tingir a vida. Agora parece vou ter que te falar isto: aqui a vida é que está a ser adoptada, fosse uma criança d’olhos bem ramelados que você no olhar lhe busca e encontra a ternura — aí você lhe gosta, lhe habitua. Aqui a vida parece uma criança enteada que lhe aceitamos em casa, ela a fugir da guerra…”

O escritor angolano Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki (palavra umbundu, uma das línguas oficiais de Angola, que signfica “aquele que enfrenta desafios” ou “guerreiro”), em seu mais recente livro lançado no Brasil, Quantas madrugadas tem a noite (São Paulo: Leya, 2010, p.21).

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Livros em movimento #1

16 de março de 2010 - 8:04 am

Cada vez mais comuns, os curtas promocionais sobre livros proliferam na internet. Alguns chegam realmente a ser sensacionais, não somente cumprindo com perfeição o objetivo de despertar o interesse sobre o livro em questão, mas indo além, constituindo-se em pequenas obras de arte. Algumas editoras brasileiras ensaiam entrar na onda, mas por enquanto restringem-se ainda apenas a vídeos informativos, sem grandes arroubos de criatividade — espero que sigam o caminho e apostem mais nessa vertente de comunicação. Abaixo, para inaugurar em grande estilo esta nova seção, um curta promocional sobre o New Zealand Book Council, que tem como personagem principal o livro Going West, do escritor neozelandês Maurice Gee.

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A China de Paulo (e de Ricardo)

20 de fevereiro de 2010 - 9:39 am

Paulo, executivo de um grande banco multinacional, com sede em Londres e presença em boa parte do globo, vive um momento de grande expectativa em sua carreira. A matriz do banco elabora uma ousada entrada no mercado chinês e busca em seus quadros os melhores nomes para levar o projeto à frente. O nome de Paulo destaca-se.

Aliás, o nome destaca-se até não mais poder. Isto porque Paulo, que tem como secretária a Paula (filha do seu Paulo e tia do Paulinho), e conta com o apoio da Paula do RH (que, por sua vez, responde diretamente ao presidente do banco no Brasil, o irlandês Paul), faz de tudo para ser escolhido pelo figurão Paulson, em Londres, para chefiar o Projeto China. No meio do caminho, contudo, sofre com as fofocas que correm pela empresa: a Paula cochicha com a Paula que o Paulo se veste mal, o Paulo ri com o Paulo sobre as pretensões do chefe Paulo. Tudo isso só poderia ocorrer, claro, em São Paulo…

A princípio a estratégia de Ricardo Lísias em seu O livro dos mandarins (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, 344p.) pode deixar o leitor confuso (um efeito certamente pretendido), mas logo o torvelinho em que o autor nos coloca começa a jogar a favor da trama. Egocêntrico, auto-centrado, Paulo enxerga o mundo como um espelho. Tudo e todos estão lá para validar sua trajetória, existindo meramente para evidenciar sua supremacia. Vale dizer: alguns dos outros poucos nomes que aparecem no livro são o de Fernando Henrique Cardoso (ídolo absoluto de Paulo), Mao Tse-Tung e Godói (“esse filho da puta”), o grande antagonista da trama. O nome vai ganhando variações, incorporando adjetivos, ou transmutando-se conforme a história avança: “o homem Paulo”, “profissional brilhante”, “Maozinho”, Paul*, depois Pau**, até chegar ao enigmático e despersonalizado *****.

Utilizando como recurso estilístico o maçante jargão corporativo, o romance de Ricardo Lísias é o registro de uma existência alienada. Retire o ambiente empresarial e os infinitos estratagemas de Paulo para ganhar prestígio e galgar postos mais altos dentro da hierarquia do banco e o que teremos? Nada. Nenhum amigo, nenhum familiar — as pessoas que se sucedem na trama são como degraus, peças num jogo estúpido de um único jogador. O único traço que o distingue como indivíduo é uma dor nas costas que o acompanha desde criança. A única característica que o faz humano (e não apenas um apêndice da corporação) é a dor.

Outro recurso utilizado com bastante habilidade pelo autor, a reiteração de informações (sobre a dor, sobre a futura descoberta da cama Ceragem, sobre as características profissionais de Paulo ou de seus colegas de empresa), que voltam e voltam pontuando o avanço da história, parece ser remédio para um “leitor esquecido”, pouco antento, que está “sempre chegando” ou que está pouco se lixando para o que está sendo dito. Parece indicar um diálogo autista com o mundo, em que o narrador tem pouca segurança de que aquilo que diz está sendo realmente recebido pelos possíveis leitores. Um discurso em que pouco importa o que o receptor está achando do que está sendo dito. Importa falar, exprimir, “colocar para fora”, e não necessariamente se comunicar. Parece indicar a absoluta solidão em que Paulo — perdido em meio a seus infinitos reflexos — se encontra. É como se o narrador emergisse da consciência atual, passada e futura do protagonista. O resultuado é um fluxo narrativo entrecortado, confuso, cheio de retornos e tautologia.

Ricardo Lísias, por Leonardo Wen / Folha Imagem (reprodução)

Sob certo ponto de vista, O livro dos mandarins pode não ser das leituras mais agradáveis — no sentido de uma leitura “edificante”, que apresenta a cada esquina de parágrafo respostas e alívios morais para o leitor. Não, nesse sentido não é definitivamente um livro agradável. Pelo contrário, ele incomoda, angustia, sacode e procura gerar esclarecimento (dando fim à verdade aparente, confortável, e trazendo à luz as milhares de facetas dela que se escondem atrás das certezas do dia-a-dia). É esse o projeto de Ricardo Lísias. E para levá-lo a cabo, o autor corre todos os riscos, indo até os limites, desafiando as fronteiras do que poderia ser considerado pelos mais apressados “chato”, “maçante”, “esquemático”.  O fato é que há diversos sabores a serem apreciados no mundo: o amargo, o azedo, o ácido, dependendo da combinação e da habilidade do chef, podem dar origem a pratos de valor inigualável. E até agora, Ricardo Lísias tem provado ser um grande chef.

Escrito por Ronoc ¦

– Ω –

Trecho: “Para aproveitar melhor as poucas horas de sono que lhe restam, ele precisa organizar a cabeça. Em primeiro lugar, o projeto exige isso e aquilo dele e, para cumprir essas metas, o branquelo deve aprofundar seu conhecimento sobre o país para onde foi enviado. Os chineses são realmente complexos, já lhe tinham dito. Depois, um sono curto mas profundo logo virá. Basta que ele crie uma estratégia de ação, organize os horários e a maneira de agir e desenvolva um plano de diálogo que lhe permita otimizar os lucros do banco […] o bom executivo sabe que de tudo é importante sempre tirar algum tipo de enriquecimento pessoal.” (p. 132)

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Sobre guerra, livros e… tortas!

19 de fevereiro de 2010 - 8:46 am

Decidi finalmente ler A sociedade literária e a torta de casca de batata, de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows (Rio de Janeiro: Rocco, 2009, 304p.), após ouvir amigos e colegas elogiarem algumas vezes o romance. E, bem, se você trabalha com livros e não dá ouvidos ao que seus colegas de profissão dizem sobre as leituras que estão fazendo, das duas uma: ou você tem um plano totalmente seu, rigorosamente independente, de leitura, ou é um chato de galochas — em ambos os casos, não sabe o que está perdendo…

Engraçado é que, deixado à própria sorte, o livro pode simplesmente passar despercebido, sumir em meio à babélia das livrarias. Isto porque ao folhear rapidamente ou dar uma espiada nas orelhas de A sociedade literária… você talvez se veja encurralado pela simplória mas irresistível pergunta “Mais um romance sobre a Segunda Guerra Mundial?” e passe adiante.

Poderíamos começar respondendo para nós mesmos que enquanto nascerem seres humanos, surgirão com eles, dia após dia, novos e talvez tão ou mais interessantes pontos-de-vista sobre questões do passado. Outros seriam ainda mais contundentes e lembrariam que apenas no dia em que pudermos honestamente dizer que nenhum conflito armado deixa suas lamentáveis marcas sobre a Terra, somente nesse dia poderemos dizer sem risco de engano que talvez seja mesmo desnecessário revisitar antigos conflitos atrás de lições. O caso pede uma abordagem mais serena: afinal, A sociedade literária… defende a si mesmo de forma mais do que competente.

A sociedade literária… é, como o próprio título sugere, um livro sobre livros, sobre o amor à leitura, sobre o poder dos livros e das histórias de elevarem o espírito humano e de, no extremo, darem sentido à nossa existência. É, sim, uma obra sobre a Segunda Guerra Mundial, mas para começo de conversa, o centro da ação não se passa em nenhuma capital européia, nem no front russo ou japonês. O palco é Guernsey, uma das ilhas do Canal da Mancha que fazem parte do Império Britânico e que permaneceram ocupadas pelos alemães (completamente isoladas do mundo) durante cinco anos. A mudança de foco geográfico, por si só, já traz um frescor à trama, colocando em evidência personagens, paisagens e situações que não estamos acostumados a ver em romances históricos sobre o período.

Mary Ann Shaffer (direita) e sua sobrinha Annie Barrows, que a ajudou a concluir "A sociedade literária..."

Estamos em 1946. A guerra acabou há pouco mais de um ano, e o cenário ainda é de desespero e destruição; indivíduos e famílias tentam se reerguer, procurando superar as atrocidades que viveram ou presenciaram, e tentando esquecer as vidas que deixaram para trás, os familiares que jamais reencontrarão. Somos apresentados a Juliet Ashton, jovem escritora em ascensão, que durante a guerra assinou uma coluna em um grande jornal inglês encarnando uma correspondente que preferia guardar um olhar otimista e bem-humorado sobre o horror que assolava o mundo. Ciente de que seu trabalho ajudou muitos a enxergarem uma luz no fim do túnel durante os momentos mais sombrios, Juliet, contudo, está cansada e quer novos rumos para sua carreira. Durante uma turnê de divulgação do livro que reuniu suas colunas, a escritora recebe uma inesperada carta de um certo Dawsey Adams, residente de Guernsey, que diz ter chegado à autora por ter adquirido um livro usado que pertencera a Juliet (e que continha seu nome e endereço numa das capas). Dawsey escreve porque adorou o livro e gostaria de saber mais sobre seu autor. Dessa aparentemente simples demanda nasce uma intensa troca de correspondências que conduzirá toda a história e nos apresenterá seus personagens. Pelas cartas, conheceremos um grupo de fazendeiros (do qual Dawsey faz parte) que a princípio pouco sabem uns dos outros, mas que a Ocupação Nazista obrigará a se aproximar. Gente humilde, simples, cheia de dignidade e vontade de viver. É graças a esse apego à vida (que leva inclusive à subversão) que o grupo vivencia um episódio que transformará cada um dos envolvidos. Como consequência, surgirá a Sociedade Literária do título. Podemos dizer que a explicação completa sobre a fundação da sociedade — bem como o porque do “Torta de casca de batata” — é um dos grandes trunfos do romance, e portanto o guardaremos para que cada um o saboreie a seu tempo.

Mary Ann Shaffer, falecida em 2008, sem ver o enorme sucesso que seu livro alcançaria em todo o mundo, teve uma vida dedicada aos livros: foi bibliotecária, livreira e editora. Assim, não poderia mesmo ter deixado o planeta sem acrescentar à infinita biblioteca da humanidade uma obra que levasse sua assinatura. Annie Barrows, autora de livros infantis (nenhum deles traduzido no Brasil até o momento), sobrinha de Mary Ann, foi a responsável pela conclusão da obra, quando sua tia adoeceu.

A dupla criou um daqueles livros que, quando percebemos que as páginas vão chegando ao fim, começamos a ler mais lentamente porque já antecipamos a dor de ter de fechar as capas e retirar-nos da história. Que tenham conseguido fazer isso escrevendo sobre um tema pretensamente já tão visitado constitui um feito digno de ser divulgado.

Escrito por Ronoc ¦

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Espionagem a serviço da literatura

18 de fevereiro de 2010 - 4:00 pm

Todo texto literário que se preze conta não uma, mas inúmeras histórias simultaneamente. Enquanto umas correm na superfície, outras estão entranhadas na carne das palavras. Assim, embora Luis Fernando Verissimo narre em seu mais novo livro — Os Espiões (Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2009, 142p.) — as peripécias e trapalhadas de uma trupe de amigos convertidos da noite para o dia em investigadores nada profissionais, fala também sobre a indomável necessidade que sentimos de povoar de fantasia a realidade que nos cerca. E do desejo de exprimir, de levar aos outros essas realidades paralelas, nossos mundos sonhados. Afinal, como alguém já deve ter dito, somos todos filhos de Sherazade, contando histórias uns para os outros para tentar escapar das garras da morte.

Os Espiões apresenta Verissimo como o conhecemos tão bem: inteligente, bem-humorado, econômico e certeiro. Alguns sentenciam que escrever é apagar, cortar, suprimir; pois bem, talvez não exista escritor no Brasil que faça isso de forma tão eficiente quanto Verissimo. Sem perder o pulso da trama, sem sonegar nenhum prazer ao leitor, compõe um texto limpo, direto e ao mesmo tempo instigante e saboroso.

A história se desenrola entre Porto Alegre e uma provavelmente fictícia pequena cidade do interior chamada Frondosa, sendo narrada por um faz-tudo de uma obscura editora da capital gaúcha. Frustrado em sua vida pessoal e profissional, acostumado a passar metade da semana bebendo e a outra tentando se recuperar da ressaca, o sujeito recebe certa vez um envelope branco contendo um trecho xerocado de um manuscrito. Encarregado, entre outras coisas, de responder aos aspirantes a escritores, indicando se os originais enviados interessam ou não à editora, o narrador — normalmente azedo e cético quanto à capacidade humana de produzir relatos realmente interessantes — vê-se tragado pela história que tem em mãos. Revelando as desventuras de uma tal Ariadne, o manuscrito apresenta-se como um relato biográfico que encerra ao mesmo tempo denúncias, sofrimento e uma espécie de despedida de um mundo que se tornou cruel demais para ser suportado. Pronto! É o suficiente para fazer germinar a semente da obsessão. Determinado a descobrir mais sobre a autora do manuscrito, o protagonista vai arrastar a si e a seus companheiros mais próximos para uma jornada de improváveis e risíveis aventuras pelo mundo da espionagem.

Sem estragar qualquer surpresa, podemos dizer que, como em tantos dos textos de Verissimo, o ponto alto do livro é a galeria de personagens: os convivas impagáveis que maquinam planos para desfazer o novelo de um mistério com cheiro de romance noir -B enquanto se embriagam, mentem para si próprios e disparam absurdos um atrás do outro; o falso professor que vive de enxovalhar o meio literário e que vai fazer as mais estapafúrdias palestras sobre assuntos dos quais não conhece uma linha; o padre que por ser surdo obriga os fiéis a gritar seus pecados, transformando as confissões em um big brother interiorano; entre tantas e tantas figuras que vão temperando o enredo aparentemente simples e nos envolvendo linha a linha.

De maneira sintética, à la Verissimo: Os Espiões é para ler e se divertir!

Escrito por Ronoc ¦

– Ω –

Trecho: “O Dubin dizia que a má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à magnífica compulsão. Dizia isso para me provocar, nas nossas intermináveis discussões na mesa do Espanhol, mas naqueles dias, enfeitiçado pelos textos da Ariadne e com minha misantropia natural dissolvida em água mineral, eu lhe dei razão. Todos nós merecíamos pertencer à irmandade dos que escrevem, só por querer.” (p.84)

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A estrada

8 de setembro de 2009 - 8:44 am

Começam a ser divulgados os primeiros trailers e imagens do filme A estrada, do diretor australiano John Hillcoat, adaptação do romance homônimo de Cormac McCarthy. A distopia que apresenta um mundo distruído e o choque entre a busca pela sobrevivência e a permanência do amor em meio à barbárie traz Viggo Mortensen à frente de um grupo de grandes atores. A previsão para a estreia no Brasil é 05 de fevereiro de 2010. Se o filme tiver apenas 1 décimo da força do livro, será imperdível.

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Julgue o livro pela capa #1

19 de agosto de 2009 - 9:57 pm

A partir deste mês, a editora Companhia das Letras apresenta ao público a nova roupagem de sua extensa Série Policial. O visual sóbrio, em que predominavam fotos em preto e branco sobre um lay-out quase totalmente negro dá lugar a um design mais arrojado, com cores vivas e maior destaque para o nome dos autores. As bordas coloridas, que foram — e ainda são — surpreendentes, e constituem um dos traços diferenciais da série, foram mantidas. Ao que tudo indica, a editora pretende, com esta modificação, dialogar com um público maior, flertando com jovens que, hoje, dificilmente procuram de forma espontânea os livros da coleção. Se o projeto anterior, assinado por João Baptista da Costa Aguiar, evocava cenas de mistério, com uma abordagem mais clássica; o novo, criado por Elisa V. Randow, parece apostar em um clima pop soturno — se é que me faço entender…

Abaixo, uma amostra dos dois primeiros livros a estamparem o novo projeto: O último caso da colecionadora de livros, de John Dunning, e Paciente Particular, de P. D. James. As capas dos demais títulos da série serão substituídas aos poucos, assim que novas tiragens forem sendo impressas.

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O mundo e o indivíduo, segundo Roth

9 de agosto de 2009 - 10:19 am

Indignação, de Philip RothIndignação (São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 171p.; tradução de Jorio Dauster), o mais recente livro do escritor norte-americano Philip Roth, apresenta a história de Marcus Messner, um jovem norte-americano, filho único de uma família judia que tira o sustento de um açougue kosher na cidade de Newark, Nova Jersey. Marcus transita para a vida adulta no início da década de 50, quando seu país está envolvido na Guerra da Coréia, em que milhares de jovens como ele perdem a vida a cada dia.

A passagem para o mundo adulto traz certa liberdade e muitas descobertas para Marcus, mas também a crescente consternação de seu pai quanto ao futuro do filho. Num mundo tão perigoso, como garantir a segurança de todos os sonhos e esperanças materializados na figura de seu único herdeiro? O medo do senhor Messner é difuso: toda e qualquer coisa ameaça seu menino, põe em risco a continuidade de sua família. Já para o jovem, o receio é ir para a guerra e perder a vida, como seus primos ou tantos outros conhecidos. Sentindo-se sufocado pelos cuidados do pai — que Marcus considera à beira da neurose —, o jovem põe em execução seu plano de transferir-se do curso superior que frequenta em sua cidade para outro, desde que seja a quilômetros das trancas da porta de sua casa.

Meio ao acaso, escolhe Winesburg, no estado de Ohio, sem saber que este será apenas o primeiro passo rumo a uma sucessão de armadilhas. Ao chegar à faculdade, além da estranheza natural de novato, Marcus passa a protagonizar uma série de desentendimentos: com colegas de quarto, com membros de fraternidades que a todo custo querem trazê-lo para suas esferas de influência, com o diretor; com o anti-semitismo velado ou escancarado de boa parte dos alunos, com o conservantismo religioso que é a espinha dorsal da instituição.

Marcus não se dá bem com instituições. Não as compreende e não é compreendido por elas. Família, igreja e universidade censuram o rapaz por sua exacerbada independência, por ser irredutível quanto a suas convicções, por não conseguir comungar das crenças predominantes ao seu redor. No extremo, acusam-no de ser intolerante com os outros.

Ora, mas e o que é a guerra senão a negação total do outro, do direito do outro professar suas crenças, sua visão de mundo, seu estilo de vida? É por serem portadores da “liberdade universal” que os Estados Unidos, Europa, Rússia e tantas outras nações lançam-se em três guerras em 50 anos? Ou também por não conseguirem suportar a existência do Outro? Por enxergarem ameaça no que é diferente? Esse paralelo é sutil e magistralmente exercitado ao longo de todo o livro por Roth.

Brilhante nos estudos, tenaz no trabalho, falta a Marcus o que os arautos da psicologia fast-food chamariam de “inteligência emocional”. Por mais que seja um hábil debatedor, capaz de concatenar ideias e discurso de forma admirável, ao se ver encurralado, o jovem aspirante a advogado não consegue muito mais do que recorrer a um bom e sonoro “Vai se foder!”. Ou à fuga.

Marcus foge da família, foge das fraternidades, dos times, das igrejas; não quer ser enquadrado, se sentir pertencendo a ninguém — salvo, talvez, a Olivia Hutton, a colega por quem se apaixona, e que como ele luta para firmar sua existência dentro da lógica de um espaço-tempo que não compreende. Por mais que procure um lugar que seja seu, exclusivamente seu, Marcus se vê cercado, invadido, refém de tradições que despreza. De forma progressivamente dolorosa, vai descobrindo quão frágil é sua posição no interminável enfrentamento entre indivíduo e meio social.

A mudança de Nova Jersey para Ohio traz mais consequências do que o rapaz poderia ter imaginado. Ao deslocamento geográfico, corresponde um deslocamento no campo das ideias. Marcus move-se da acanhada porém aberta Robert Treat, onde os professores defendiam opiniões “decidida e desavergonhadamente de esquerda”, para o coração do conservadorismo WASP (white, anglo-saxon, protestant). Filho de judeus, ateu convicto, Marcus se vê obrigado, entre outras coisas, a frequentar a igreja semanalmente e a aguentar os sermãos de pastores e moralistas que, para ele, só fazem envenenar a mente de seus incautos colegas.

Contra tudo e contra todos, o que pode fazer o jovem e apaixonado Marcus senão se erguer e, indignado, gritar “Não!”?

Precursor da contestadora geração Flower Power, que desabrochará na década de 1960, Marcus se vê enredado em um mundo hipócrita que nos fronts estrangeiros desperdiça a vida de seus jovens para preservar em solo nacional o delírio consumista de um modus vivendi cor-de-rosa, povoado por famílias felizes e perfeitas, garotas e rapazes saudáveis e seus carros reluzentes.

As engrenagens da máquina-mundo moem a carne e dilaceram a mente de Marcus Messner — por mais que procure fugir, em nenhum lugar estará sozinho. Em nenhum lugar estará a salvo. Porque ele mesmo carrega, dentro de si, o embrião das estruturas que o oprimem.

Como diz o presidente de Winesburg em repreensão aos levantes estudantis que em determinado momento tomam conta da faculdade, a História não é o pano de fundo, é o palco. E cada um de nós pode até escolher o papel que pretende encenar, mas o enredo…

Escrito por Ronoc ¦

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O homem que amava um bom mistério

4 de julho de 2009 - 9:10 am

Enigmas e mistérios fascinam o ser humano. Poucas coisas são mais excitantes — e viciantes — do que se embrenhar em séries de informações desconexas e perguntas aparentemente sem resposta, ruminar pedaços de raciocínio, perder-se entre conclusões conflitantes e debilmente sustentadas, para, no fim, emergir, buscando o ar tal qual um afogado, com a resposta triunfal. Que liberta, sim, mas que também é apenas a ante-sala da escravidão: queremos e precisamos de mais!

Assim nos portamos quando nos cai nas mãos um bom romance policial. Durante dias (quando a leitura toma dias, já que normalmente nos consome de tal maneira, que em horas somos obrigados a concluí-la) nos vemos como que hipnotizados, arrancados de nossa rotina e transportados para um mundo em que criminosos e investigadores se confrontam implacavelmente.

Assim me portei quando finalmente me rendi aos apelos de Os homens que não amavam as mulheres (São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 522p.), do escritor sueco Stieg Larsson (1954-2004). Já havia lido e ouvido muita coisa — boa e ruim — sobre o livro. Mas por algum motivo ainda não tinha me dado ao trabalho de tirar uma conclusão minha. Saldei a dívida nestes últimos dias. E não me arrependi.

Li em alguns lugares que um dos principais trunfos da trama de Larsson repousa no fato de ele subverter os papéis tradicionais nas tramas policialescas. E isso estaria evidente na pouco ortodoxa dupla de protagonistas da série Millennium. De um lado, o jornalista econômico Mikael Blomkvist, com uma carreira irretocável marcada por investigações profundas, denúncias corajosas e a consequente formação de uma legião de detratores e arquinimigos. Capaz de abalar impérios corrompidos com fatos inapeláveis e palavras contundentes, Blomkvist não desfere um soco ou dispara um tiro sequer durante todas as 522 páginas da história.  Já Lisbeth Salander, que virá a se tornar sua colega, é uma jovem misantropa de vida nebulosa, com uma aparência frágil mas que se revela capaz de acessos de fúria incontrolável dignos de um lutador de UFC; acima de tudo, possui um raciocínio capaz de desnortear raposas. Ela ocupa, poderíamos dizer, o papel forte da dupla.

Não me parece que essa forma de distribuir os papéis, embaralhando características supostamente “masculinas” e “femininas”, seja propriamente uma novidade — aliás, a própria distinção por gêneros de traços de caráter é pra lá de questionável. O que realmente me atraiu foi a riqueza de temas que vão se incorporando à trama, e a maneira (quase sempre) segura com que Larsson vai conduzindo-os ao longo do livro. Uma família tradicional e seus segredos? Ok. Um mistério não resolvido do passado e que continua a assombrar os envolvidos dia após dia? Ok. Uma dupla de investigadores cativantes e que nos conquistam com sua inteligência e determinação? Ok. Mas a história é atravessada por crimes econômicos, pontuada por reflexões éticas, avança em múltiplas direções, sem deixar de esmiuçar a vida de seus personagens, nos apresentando os rincões da gélida Suécia e também da alma humana. Acima de tudo, é nessa versatilidade que está a força do romance.

De qualquer forma, não espere que Os homens que não amavam as mulheres seja um clássico. Pode ser que daqui a alguns anos, quando a poeira levantada por filmes (o primeiro começou a estrear em capitais européias no final de maio) e etc. baixar, ele e os outros livros da série caiam no mais completo esquecimento. Quem sabe? Mas para quem não sofre da doença que obriga a condenar tudo quanto é romance policial aos porões da subliteratura, esta pode ser uma leitura bastante satisfatória.

– Ω –

Stieg Larsson morreu em 2004, com apenas cinquenta anos, e pouco tempo após entregar os três primeiros livros da série Millennium. Sim, porque dizem que ele tinha em mente pelo menos 10 livros. Sua viúva garante ter descoberto as primeiras 200 páginas do que seria a quarta aventura. Já se ouvem boatos de que editoras do mundo inteiro disputam o direito de colocar ghost-writers (sem trocadilhos) para escrever como se fossem Larsson (algo como o que se faz com Robert Ludlum). A verdade é que o destino da Millennium talvez nem Blomkvist ou Salander sejam capazes de prever.

Sorte minha que ainda tenho dois livros pela frente.

Escrito por Ronoc ¦

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Pitada de sal #9

21 de maio de 2009 - 11:57 am

“Por que não estou escrevendo este livro mais depressa? Estarei sofrendo de ‘bloqueio de escritor’? Não, você não está sofrendo ‘bloqueio de escritor’, está apenas mostrando bom senso ao não publicar nada por enquanto. Você está mostrando consideração para com os leitores ao não lhes dar texto ruim. Muitos escritores deviam fazer o que você está fazendo — NÃO escrever. Já existe muito texto ruim por aí, para que mais? As estantes dos Estados Unidos estão cheias de livros de segunda classe de escritores de primeira. Muitos deles têm um público cativo e por isso os editores publicam suas besteiras. Eles publicam tudo o que vende. Mas os escritores deviam ficar bloqueados. Seria uma coisa boa para a reputação deles, para os custos de produção das editoras e para os padrões do público leitor em geral. Deveria haver um prêmio Nacional de literatura oferecido anualmente a certos escritores por NÃO ESCREVER.”

Gay Talese refletindo com seus elegantes botões e alfinetando alguns de seus pares em Vida de escritor (São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.403; tradução de Donaldson M. Garschagen)

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Pitada de sal #8

14 de maio de 2009 - 8:54 am

“Penso muito no futuro dos livros. Podem continuar a competir com as formas rápidas, baratas, fáceis, que não exigem leitura nem pensamento? Devo dizer que sim, ou que alguns deles estão tentando. Muitos livros hoje são escritos tendo o cinema em mente. Dizem que alguns editores não publicarão um livro se não houver a possibilidade de vendê-lo para o cinema. E até o escritor em muitos casos se envolve, meio escritor e meio vendedor. Tem de ficar numa livraria rotulando seu produto com seu nome. Tem de ir a programas de televisão e tornar-se um macaco treinado. Deve sujeitar sua vida privada, sua vida sexual e seus músculos, até mesmo seu cabelo, ao olhar boçal de seus possíveis leitores. Dizem que está abandonando o livro caso não faça essas coisas. Estará sendo anti-social caso não permita que as revistas populares registrem seu café da manhã e sua esposa ou esposas em papel lustroso.

Não acredito que um livro possa competir com seus rivais nos termos deles. Por outro lado, eles não podem competir com o livro nos termos deste. Nenhum outro meio, exceto a música, pode como ele ‘atrair a mente e as emoções’. Não se pode conceber um filme como pessoal, como um livro amado é pessoal. Nenhum programa de televisão é amigo como um livro é amigo. E nenhum outra forma, exceto outra vez a música, convida à participação do receptor como um livro faz.”

John Steinbeck em texto da década de 1950 e que faz parte de A América e os americanos (Rio de Janeiro: Record, 2004, p.209; tradução de Maria Beatriz de Medina).

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Passeio de domingo #2

25 de janeiro de 2009 - 9:28 am

O prêmio Nobel de literatura José Saramago é acusado de plágio. Há 3 anos, o escritor mexicano Teófilo Huerta tenta provar que o livro Intermitências da morte, lançado por Saramago em 2005, tem pontos em comum demais com seu conto ¡Últimas Notícias!, publicado em 1987 como parte do livro La segunda muerte. Huerta mantém até um blog de onde dispara seus petardos contra o laureado escritor português. Para que cada um tire suas próprias conclusões, a revista eletrônica Cronópios resolveu publicar uma tradução do conto. Às comparações, pois! Ainda no campo dos grandes mestres, mas do lado de cá do Atlântico, os machadianos de plantão, se é que ainda não a conhecem, devem visitar a Machado de Assis em linha, revista eletrônica de estudos exclusivamente voltados à obra do Bruxo do Cosme Velho produzida pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Pra finalizar, uma dica estritamente bibliófila: uma entrevista com Coralie Bickford-Smith, designer inglesa de capas de livros responsável por algumas das mais inacreditavelmente belas edições que a Penguin tem lançado nos últimos anos.

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2009: dez anos do primeiro homem em Marte

28 de dezembro de 2008 - 2:56 pm

Imagine que após séculos de sonhos e décadas de ensaio, a humanidade finalmente consegue por os pés em Marte, descobre que o planeta não só possui construções de fabulosa arquitetura, mas também — segurem seus queixos — é habitado por figuras que lembram, em muitos aspectos, os terráqueos. Imagine que os astronautas enviados nessa venturosa missão inaugural buscam a primeira casa que avistam, dirigem-se à porta, batem nela, vêem-na abrir-se e, quase engasgados de emoção, dizem: “Olá! Viemos da Terra!” Do outro lado, uma dona de casa marciana recebe a notícia com o entusiasmo de quem aguenta a lenga-lenga de vendedores de bugigangas…

Paisagem marciana, pelas lentes da sonda Mars Pathfinder.

Paisagem marciana, pelas lentes da sonda Mars Pathfinder.

Quando ainda não havia spirits vasculhando o solo marciano e de lá nos enviando cartões-postais improváveis, quando metade do Planeta Terra era, ele sim, vermelho, e os comunistas ocupavam o posto de vilões favoritos da “América”, um autor norte-americano utilizava toda sua potência criativa para descrever a epopéia humana rumo a Marte. Ray Bradbury (1920- ) — talvez mais conhecido por Fahrenheit 451, que foi levado ao cinema por François Truffaut — lançou como livro, em 1950, a reunião de 26 contos que vinham sendo publicados em diversas revistas de pulp fiction. Ao conjunto, deu o título As crônicas marcianas (São Paulo: Globo, 2005).

Aqueles que torcem o nariz para a literatura de ficção científica, rotulando-a como escapista, alienada e alienante, não fariam mal em aprender uma ou duas boas lições com Ray Bradbury (com Philip K. Dick e William Gibson, também, só para citar mais dois grandes escritores do gênero).

Na verdade, As crônicas marcianas tratam, antes de mais nada, dos encontros e desencontros da espécie humana consigo mesma. E só por essa razão, sua leitura será valiosa hoje e no futuro, como foi em sua época. Busca por liberdade, por significado e compreensão da existência, limites da tolerância, identidade versus alteridade, choques culturais, desenvolvimento sustentável — são alguns dos temas que, com maior ou menor intensidade, atravessam as narrativas de Bradbury, conferindo-lhes profundidade e possibilidades de interpretação variadas.

Alguns contos, como Flutuando no espaço (pp. 159-179) e Usher II (pp. 182-203), escancaram o tom político, avançando sem pudores sobre questões chave dos EUA da época, como os direitos civis da população negra e o flerte com a censura trazido pela paranóia macartista.

“Os antigos nomes marcianos eram nomes de água, ar e de colinas. Eram nomes de neves que caíam no sul em canais de pedra para preencher os mares vazios. E nomes de feiticeiras enterradas, de torres e de obeliscos. E os foguetes esmagavam todos os nomes como marretas, transformando o mármore em argila, despedaçando os marcos de barro que davam nome às antigas cidades, e nesses escombros enfiavam-se postes suntuosos com novos nomes: CIDADE DO FERRO, CIDADE DO AÇO, CIDADE DO ALUMÍNIO…” (pp. 180-181) Estava Bradbury falando de foguetes humanos invadindo Marte, ou de caravelas singrando os mares rumo ao Novo Mundo? De astronautas, ou de garimpeiros em busca de um Oeste “selvagem”? São analogias óbvias, que o próprio autor se encarrega de alimentar ou explicitar aqui e ali nos contos. Mas deve-se destacar que essas aproximações, apesar dos 50 anos de idade, ainda obrigam a pensar, seguem provocando incômodo.

Em 2009, comemoram-se os 10 anos da primeira pegada humana deixada em solo marciano — ao menos se acreditarmos nos relatos de Bradbury… Prepare-se para as comemorações (re)descobrindo este clássico da ficção científica.

Escrito por Ronoc e também publicado no Blog da Cultura ¦

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O local da criação

16 de novembro de 2008 - 10:24 am

Se você ainda não experimentou a sensação, tarda mas não falha: um dia vai experimentar. Ao terminar uma frase, página, capítulo ou o livro todo, sobrevém o assombro. Admirado, você se pergunta: “como é possível escrever tão bem?”, “como é que alguém consegue pensar nisso?”, “de onde vem a inspiração para criar algo assim?”.

Como já se disse tantas vezes, os caminhos da criação são quase sempre insondáveis. Mas uma das peças desse infinito quebra-cabeças é o espaço em que o escritor dá vazão às torrentes de idéias e sentimentos que lhe agitam a mente. Para alguns autores, as idéias vêm enquanto tomam banho, conversam com amigos, quando estão no cinema, ou sentados no parque, observando pombos. Outros já são mais metódicos, e afirmam categoricamente e sem qualquer romantismo que as idéias surgem quando a pessoa se senta à mesa e põe-se a escrever. Não importa o estilo, o fato é que uns e outros elegem um espaço rotineiro de trabalho, onde se sentem confortáveis para transportar para o papel ou o computador as peripécias de seus personagens. Sobretudo para os fãs, esses locais praticamente adquirem o status de sagrados, envoltos em uma aura que combina mistério e adoração.

Big Brother literário?: nessas casas, sim, vale a pena dar uma espiadinha

Com o intuito de saciar (ou seria de aguçar?) a curiosidade acerca dos espaços em que os escritores trabalham, desde o começo de 2007, o jornal inglês The Guardian publica uma série de ensaios fotográficos intitulada Writer’s rooms. A cada semana, um quarto, escritório ou biblioteca de um escritor ou de uma escritora é retirado do campo da especulação e revelado aos nossos olhos. Figuram na coleção, entre tantos outros, os quartos de Virginia Woolf, John Banville, Colm Tóibín, Charles Darwin, Antony Beevor e Eric Hobsbawm. No Brasil, uma das mais interessantes iniciativas que procuram preservar esses espaços é o projeto Acervo de Escritores Mineiros, mantido e desenvolvido pela UFMG. Os escritórios de Henriqueta Lisboa, Oswaldo França Júnior, Murilo Rubião e Cyro dos Anjos foram remontados nas dependências da Federal e estão abertos para visitação pública. Mas você também pode fazer um tour virtual por eles na página do projeto.

Podem até acusar iniciativas como essas de Big Brother literário, mas o fato é que nessas casas, sim, vale a pena dar uma espiadinha.

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Escrito por Ronoc. Post também publicado no Blog da Cultura.