Paulo, executivo de um grande banco multinacional, com sede em Londres e presença em boa parte do globo, vive um momento de grande expectativa em sua carreira. A matriz do banco elabora uma ousada entrada no mercado chinês e busca em seus quadros os melhores nomes para levar o projeto à frente. O nome de Paulo destaca-se.
Aliás, o nome destaca-se até não mais poder. Isto porque Paulo, que tem como secretária a Paula (filha do seu Paulo e tia do Paulinho), e conta com o apoio da Paula do RH (que, por sua vez, responde diretamente ao presidente do banco no Brasil, o irlandês Paul), faz de tudo para ser escolhido pelo figurão Paulson, em Londres, para chefiar o Projeto China. No meio do caminho, contudo, sofre com as fofocas que correm pela empresa: a Paula cochicha com a Paula que o Paulo se veste mal, o Paulo ri com o Paulo sobre as pretensões do chefe Paulo. Tudo isso só poderia ocorrer, claro, em São Paulo…
A princípio a estratégia de Ricardo Lísias em seu O livro dos mandarins (Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, 344p.) pode deixar o leitor confuso (um efeito certamente pretendido), mas logo o torvelinho em que o autor nos coloca começa a jogar a favor da trama. Egocêntrico, auto-centrado, Paulo enxerga o mundo como um espelho. Tudo e todos estão lá para validar sua trajetória, existindo meramente para evidenciar sua supremacia. Vale dizer: alguns dos outros poucos nomes que aparecem no livro são o de Fernando Henrique Cardoso (ídolo absoluto de Paulo), Mao Tse-Tung e Godói (“esse filho da puta”), o grande antagonista da trama. O nome vai ganhando variações, incorporando adjetivos, ou transmutando-se conforme a história avança: “o homem Paulo”, “profissional brilhante”, “Maozinho”, Paul*, depois Pau**, até chegar ao enigmático e despersonalizado *****.
Utilizando como recurso estilístico o maçante jargão corporativo, o romance de Ricardo Lísias é o registro de uma existência alienada. Retire o ambiente empresarial e os infinitos estratagemas de Paulo para ganhar prestígio e galgar postos mais altos dentro da hierarquia do banco e o que teremos? Nada. Nenhum amigo, nenhum familiar — as pessoas que se sucedem na trama são como degraus, peças num jogo estúpido de um único jogador. O único traço que o distingue como indivíduo é uma dor nas costas que o acompanha desde criança. A única característica que o faz humano (e não apenas um apêndice da corporação) é a dor.
Outro recurso utilizado com bastante habilidade pelo autor, a reiteração de informações (sobre a dor, sobre a futura descoberta da cama Ceragem, sobre as características profissionais de Paulo ou de seus colegas de empresa), que voltam e voltam pontuando o avanço da história, parece ser remédio para um “leitor esquecido”, pouco antento, que está “sempre chegando” ou que está pouco se lixando para o que está sendo dito. Parece indicar um diálogo autista com o mundo, em que o narrador tem pouca segurança de que aquilo que diz está sendo realmente recebido pelos possíveis leitores. Um discurso em que pouco importa o que o receptor está achando do que está sendo dito. Importa falar, exprimir, “colocar para fora”, e não necessariamente se comunicar. Parece indicar a absoluta solidão em que Paulo — perdido em meio a seus infinitos reflexos — se encontra. É como se o narrador emergisse da consciência atual, passada e futura do protagonista. O resultuado é um fluxo narrativo entrecortado, confuso, cheio de retornos e tautologia.
Sob certo ponto de vista, O livro dos mandarins pode não ser das leituras mais agradáveis — no sentido de uma leitura “edificante”, que apresenta a cada esquina de parágrafo respostas e alívios morais para o leitor. Não, nesse sentido não é definitivamente um livro agradável. Pelo contrário, ele incomoda, angustia, sacode e procura gerar esclarecimento (dando fim à verdade aparente, confortável, e trazendo à luz as milhares de facetas dela que se escondem atrás das certezas do dia-a-dia). É esse o projeto de Ricardo Lísias. E para levá-lo a cabo, o autor corre todos os riscos, indo até os limites, desafiando as fronteiras do que poderia ser considerado pelos mais apressados “chato”, “maçante”, “esquemático”. O fato é que há diversos sabores a serem apreciados no mundo: o amargo, o azedo, o ácido, dependendo da combinação e da habilidade do chef, podem dar origem a pratos de valor inigualável. E até agora, Ricardo Lísias tem provado ser um grande chef.
Escrito por Ronoc ¦
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Trecho: “Para aproveitar melhor as poucas horas de sono que lhe restam, ele precisa organizar a cabeça. Em primeiro lugar, o projeto exige isso e aquilo dele e, para cumprir essas metas, o branquelo deve aprofundar seu conhecimento sobre o país para onde foi enviado. Os chineses são realmente complexos, já lhe tinham dito. Depois, um sono curto mas profundo logo virá. Basta que ele crie uma estratégia de ação, organize os horários e a maneira de agir e desenvolva um plano de diálogo que lhe permita otimizar os lucros do banco […] o bom executivo sabe que de tudo é importante sempre tirar algum tipo de enriquecimento pessoal.” (p. 132)