Para aqueles que ao final da saga Millennium sentem-se meio órfãos, lamentando não só a perda humana que representou a morte precoce do escritor Stieg Larsson, mas também a impossibilidade de ver seu projeto se desenvolver em sua totalidade (pretendia escrever pelo menos 10 romances com a dupla Blomkvist & Salander), fica a dica (como diria meu amigo Diego Blanco): (re)des- cubram Henning Mankell. Também sueco, também romancista policial (mas não só, já que é dramaturgo e escreve também para o público infanto-juvenil), Mankell acaba de ter seu quinto livro lançado por estas plagas: Guerreiro Solitário (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 488p.; na tradução de George Schlesinger).
Mas, como sentenciariam os sábios, do começo é que se deve começar. Portanto, falemos do primeiro romance de Henning Mankell publicado no Brasil, Assassinos sem rosto (São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 312p.; na tradução de Beth Vieira).
Ao contrário dos livros de Larsson, considerados policiais apenas por falta de classificação mais apropriada (Os homens que não amavam as mulheres, o primeiro da trilogia, trata de crimes econômicos, tráfico de influência política, questões morais, embates familiares etc., e tem como protagonistas um jornalista e uma jovem hacker que trabalha numa empresa de segurança privada), Mankell trabalha com a estrutura por excelência do policial clássico: delegacia, tribunal, tiras e bandidos. Kurt Wallander — o personagem principal e que aparece em outros 8 livros — é um investigador experiente de uma pequena cidade litorânea sueca, Ystad. Aos 43 anos (mesma idade que Mankell tinha à época em que escreveu o livro, 1991), observa com crescente preocupação os rumos que seu país e seus conterrâneos tomam.
Mankell explora também um elemento praticamente indispensável dos romances noir: a solidão do protagonista. Afinal, o fato de sentirem-se à margem das sociedades cujas entranhas devem revirar dota os investigadores ficcionais daquilo que os antropólogos chamariam o olhar de estrangeiro — capaz de notar os detalhes que escapam a todos nós, domesticados pelo dia-a-dia, acostumados a rotinas, hábitos, atitudes e comportamentos que, para alguém de fora, soam peculiares, provocam interesse, exigem decifração.
Assassinos sem rosto abre com um crime brutal: um casal de fazendeiros idosos é atacado em sua casa com requintes de violência nunca antes vistos naquela região — uma cidade pequena, como dissemos. Aliás, a percepção de uma escalada nos níveis — e uma transformação nos tipos — de violência é algo que provoca mal-estar em Wallander (um policial mais acostumado a lidar com beberrões, brigas entre vizinhos e atropelamentos), e o faz perguntar-se diversas vezes ao longo do livro “Para onde está indo este país?”.
O que se destaca em Assassinos sem rosto não é uma trama altamente intrincanda e reviravoltas surpreendentes, de tirar o fôlego, mas sim uma paisagem, um clima de desolação, melancolia e abandono que se adensa em torno dos fatos e dos personagens, e dita o ritmo da história. É quase como se o crime ficasse num plano secundário, eclipsado pelo estupor diante dos mistérios e descaminhos da natureza humana. Não por acaso, o livro é permeado de idas e voltas de seu protagonista aos temas que mais o oprimem: o casamento recentemente desfeito, a incapacidade de se comunicar com sua filha, e também com seu velho pai; a desconfortável sensação de estar envelhecendo, e de não conseguir mais compreender o espaço e o tempo em que vive.
A questão política — no caso, o “descontrole” na política de concessão de asilo para estrangeiros que, martela Wallander, confunde bons e maus cidadãos, abrindo as portas do país para mafiosos e ex-torturadores de antigos regimes ditatoriais — ganha tom acentuado na narrativa de Mankell. O ódio racial, e todos os crimes a ele ligados, caracteriza outro pólo de tensão no romance, que avança oferecendo pistas falsas, embaralhando hipóteses, confundindo e atraindo o leitor até as páginas finais.
Mankell é daquela estirpe de escritores que busca ser coerente com as palavras que assina. Jovem, envolveu-se com todo tipo de manifestação política (contra a Guerra no Vietnã, contra as guerras coloniais na África etc.). Hoje, já na casa dos 60, mantém no ativismo político uma das vertentes mais importantes de sua vida. Por isso, não foi assim tão surpreendente descobrir o nome de Henning Mankell entre os presentes nas embarcações da frota humanitária turca que procurou furar o bloqueio israelense à Faixa de Gaza no final de maio. Vivendo entre a Suécia e Moçambique (onde mantém, desde 1986, um grupo teatral na capital, Maputo), Mankell mantém uma ligação especial com o continente africano, cenário de algumas de suas obras.
Esse filho de juiz que desde pequeno sentiu fascínio por compreender os mecanismos da justiça; que, ainda criança, foi abandonado pela mãe e encontrou na escrita um refúgio onde poderia moldar o mundo de seus sonhos; que, aos 16 anos, cansado da monotonia da escola, resolveu abandonar os estudos e se tornar marinheiro (trabalhando como estivador por 2 anos); tornou-se um escritor habilidoso, multifacetado e aclamado em mais de 30 países globo afora. Trata-se, seguramente, de um autor que o leitor brasileiro — sobretudo os fãs do gênero policial — precisa conhecer (ou conhecer melhor).