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Em busca de uma memória (quase) perdida

9 de fevereiro de 2009 - 9:25 pm

Há tempos, quando vasculho algumas lembranças da infância, principalmente ao recordar os programas que via na TV, sou assaltado por uma cena — uma simples e mísera cena — que logo me escapa, quase sem deixar rastros. O cenário é um desses anéis viários paulistanos que, vistos de cima, mais parecem um nó de concreto a se fechar. A gravação deve ter sido feita em um domingo bem pela manhã, porque a desolação do local é completa: não há carros, não há casas, não há viv’alma, a não ser pelos 4 ou 5 personagens (nunca consigo lembrar ao certo) que estão ali, presos na cena que se projeta na minha cabeça.

Quando surge, essa cena traz um turbilhão de emoções — tem uma aura melancólica, um quê do peso daquilo que jamais será alcançado; ao mesmo tempo, é patente a excitação e a irredutibilidade dos envolvidos em tentar encontrar uma solução para o problema que os aflige. Me parece que 2 ou 3 das pessoas presentes estavam viajando no tempo ou entre dimensões, até ficarem presas ali. E esse “ali” era algo como um mundo perdido, ou os resquícios de uma sociedade outrora magnífica, ou um refúgio humano em um planeta pós-apocalíptico. Um homem parece manipular celeremente uma engenhoca (à la telefone do E.T.) que o permitirá entrar em contato com alguém em seu planeta de origem, ou abrirá um portal de regresso, ou acionará as engrenagens de uma máquina do tempo. Ou algo assim. Porque é tudo muito vago nesse meu pedacinho de memória… Como costuma ocorrer, quanto mais me esforço por apreendê-la, mais ela se esvai!

Porém, neste sábado, algo fantástico aconteceu. Quase que por magia, enquanto dirigia pelas ruas de São Paulo rumo ao trabalho, um dos personagens subitamente ganhou rosto. Exatamente dessa forma: do nada! (E é pra entender como é que coisas assim acontecem, que na próxima encarnação eu quero voltar como neurocientista…) É óbvio que pode não passar de uma dessas tão comuns armadilhas de nossas mentes, mas ao que tudo indica o homem que tentava colocar a engenhoca para funcionar era Flávio Migliaccio. Era o que eu precisava para me lançar a uma busca semi-desesperada pelos confins da internet.

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Maneco é resgatado do esquecimento em "Os Porralokinhas"

E foi assim que (re)descobri — porque de fato não era uma informação que eu possuía, não ao menos conscientemente — o personagem Tio Maneco, vivido por Migliaccio entre as décadas de 70 e 80. Mal comparando, Maneco era um Professor Pardal tupiniquim, um personagem que transitava entre a fantasia e a ficção científica, incorporando ainda elementos da cultura popular brasileira. O personagem teve suas peripécias levadas ao cinema em Aventuras com Tio Maneco (1971), O caçador de fantasmas (1975) e Maneco, o supertio (1978). Mais recentemente, uma produção que para mim havia passado despercebida, Os Porralokinhas (2005), literalmente resgata o personagem, que volta a ser vivido, quase 30 anos depois, pelo mesmo Migliaccio. Os três primeiros filmes fizeram tanto sucesso que, ainda na década de 70, acabaram se desdobrando em uma série de cerca de 400 episódios. Meu fiapo de memória quase com certeza se relaciona a um deles.

Essa história de tentar recuperar uma recordação longínqua me fez lembrar de algo que li pouco tempo atrás num jornal. Noticiava-se que, acuada por uma crise financeira que só fazia alastrar-se, a TV Cultura via-se obrigada a inclusive reutilizar fitas antigas, aniquilando assim valiosa parte da memória da TV brasileira. Fico pensando se os episódios de Tio Maneco, que encantaram tantas crianças, não tiveram o mesmo e deplorável destino… Fico pensando se a história de viajantes perdidos em um mundo distante, que tanto me marcou anos atrás a ponto de voltar e voltar como uma assombração querida, não existe hoje apenas na minha memória e na de outras poucas pessoas apenas.

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Roy Batty (Rutger Hauer) agarra-se a seus últimos instantes de existência em Blade Runner

E tudo isso também me faz lembrar, com um travo de amargura, das belíssimas e derradeiras palavras do replicante Roy Batty, em Blade Runner. Fustigado pela chuva e agarrando-se com fervor à vida que lhe escapava, o Batty de Rutger Hauer contabilizava lembranças que só pertenciam a ele, expressava seu deslumbramento perante o mundo e, antes de morrer, sentenciava, sem perdão: “Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas na chuva…” Como se nunca tivessem existido.

Escrito por Ronoc ¦